Foi sempre inesperado, mesmo quando estava a contar. Já passei por tudo o que posso imaginar, apesar de saber que pode haver mais à espera, mais que não sei ou não quero imaginar.
Tu ficaste doente, e tu também, e em ambos os casos pareceu-nos disparatado e desadequado e achamos que, com a idade que tinham, não nos iam morrer assim. E tu, a mim pareceu-me que foi uma overdose, mas não se pode falar no assunto porque ninguém consegue sequer pôr a hipótese de que pode ter sido. E lá saíste da minha vida de um momento para o outro, ainda mais novo que os outros, e pareceu-me feio e injusto. E tu e tu, vocês já tinham “idade”, seja lá isso o que for, e percebe-se que com essa idade se calhar já estamos a contar, mesmo não querendo e mesmo sabendo que vai doer. No teu caso então, já estavas mesmo a pedir, literalmente. Porque já tinhas ficado sem tanta gente que amavas, porque já não vias sentido, porque já estavas cansada e sentias-te a ser punida por um crime qualquer.
E tu, tu eras só um periquito, e não estou a ser metafórica nem estou louca. Eras o meu periquito e pousavas na minha perna ou no meu ombro, ou ficavas preso no meu cabelo enquanto eu estudava coisas aborrecidas no quarto. E calavas-te quando eu me calava e fazias uma barulheira monumental se eu falava, se estivesse ao telefone então, nem me deixavas ouvir a minha voz.
Todos vocês estão ausentes. Às vezes sei isso, outras nem por isso. Contigo, demorei três anos a apagar o teu número de telemóvel da minha agenda, porque me parecia que te ia matar e que, enquanto o teu número estivesse ali, podias aparecer a qualquer momento. E contigo nem consegui acreditar e ainda me lembro de ti no caixão, com um ar calmo e quase feliz, como se tivesses atingido o nirvana, e se calhar atingiste mesmo. E de ti, nem me lembro de nada, como foi ou deixou de ser. Sei que sinto a tua falta. Tu, bem tu foste, e eu só soube depois. Houve decisões tomadas e nem cheguei a despedir-me, e nunca fui ver onde dizem que está o que resta de ti. Não sei o que fazer com isto, com esta despedida que não foi, e com o pressentimento que tive de que não te tornava a ver a última vez que te abracei. E tu, foste cremada. E eu só me lemro do caixão a desaparecer e de pensar como tinha sido bom para ti ir, porque querias tanto ir.
Mas vocês continuam aqui, todos.
Tu ensinaste-me a gostar de banda desenhada e a interessar-me por vinhos e a perceber do assunto. E tu, tu fizeste-me gostar de música e apetecia-me ter aprendido a tocar piano, mas não aconteceu. Mas mostrava-te os meus poemas e tu tinhas sempre coisas lindas para dizer, e eu não parei mais. Tu aí não estiveste nunca muito tempo comigo, porque as nossas vidas eram muito diferentes, mas eras bom e meigo e eu pensava que queria ser como tu quando fosse grande. E vocês as duas, tão diferentes e tão parecidas, foram modelos para mim, fortes, resistentes, determinadas, lutadoras.
E de todos vocês, ficou-me o sentido de humor… e muito amor.
Em alguns momentos, sinto muito a vossa falta, de todos juntos ou de um de cada vez. E apetece-me a vossa presença. E penso o que fariam, o que diriam, como reagiriam nos momentos que a vida nos põe à frente. E vocês lá vêm ajudar, dentro da minha cabeça.
Não sei como me despedir. Por isso, não o faço. Vocês estão todos aqui, onde eu estou. Até o estúpido do periquito.
Dora Cabral