Foto: Alone - Mike
Hoje decidi partir. Podia ter avisado com algum tempo de antecedência mas não nos supus à mercê de maleitas sazonais. Enquanto oscilámos entre a primavera e o verão a coisa foi correndo, o outono e o inverno são impossíveis de aguentar ao teu lado: quem tu és nos dias negros nem o diabo quer para companhia. Transfiguras-te, insidiosamente, trazendo os piores sacanas do mundo na algibeira. Demorei a perceber que os conhecias de longa data e que te construías, enquanto pessoa, sob o seu patrocínio. Acreditei piamente seres apenas uma alma perdida e mal-amada mas cheia de vontade de ser tudo aquilo que dizia (querer) ser. Acreditei nas tuas palavras, nos teus silêncios, na tua presença, na tua ausência, nas tuas intenções e gestos “genuínos”. E, até depois de já não acreditar, escolhi ficar. Fui incapaz, apesar dos sinais cada vez mais evidentes, de ver o pior em ti, de te imaginar capaz de tudo aquilo que hoje sei. Em boa verdade, jamais acreditaria em tal se o mesmo me fosse narrado por terceiros. Tinha de ser assim: ver para crer, preto no branco, uma chapada dada pela língua de uma baleia azul. É indescritível o que se sente quando tudo aquilo que se pensava ser verdade não o é. Quando nos percebemos atores num enredo do qual nunca escolhemos fazer parte. Na verdade, por opção, nunca estaria aqui. Esta história contada ao pormenor seria igual a muitas outras, sobretudo depois de a teres tornado vulgar, decadente e pequena. Estabeleceste as regras do jogo mas eu escolho dar-lhe um final. Hoje. Sim, hoje mesmo. Não consigo respirar, não sinto nada mais do que desespero neste momento em que a vida, tal como a conheci nos últimos anos, ruiu perante os meus olhos. É desolador saber que tudo o que disseste e fizeste foi estudado, que faz parte do teu jogo doentio e que vais mentir até ao último minuto comigo. Claramente, não lamentas nada no teu discurso contraditório, apenas teres sido desmascarado. Não há em ti um pingo de honestidade, e nem isso consegues fingir, mesmo que penses que sim… Por isso, hoje, decidi partir. Não sei de quanto tempo vou precisar para curar o que ainda sinto mas jamais o farei permanecendo contigo. Preciso de sair deste pesadelo para poder pensar com clareza, longe da angústia que me consome. A tua máscara caiu por terra, por mais que te esforces em mantê-la. Já só quero que te cales e me deixes ir embora. Não peças desculpas vãs, não justifiques o indesculpável. Deixa-me regressar a casa, respirar amor e reconstruir-me na dor que me trouxeste, longe do asco que agora me causas. Tenho mil perguntas mas não vou fazer nenhuma: não quero ouvir mais nenhuma mentira, não quero lágrimas de crocodilo e acessos de raiva. Cala-te, suplico. Só quero ir-me embora, não há mais nada a dizer. Já não aguento ver-te aí, de pé, na cena teatral que ensaias há anos, consumido pelo ego e pela maldade, incapaz de perceber que já não há mais nada em ti que eu deseje, mesmo que ainda te ame. Atrai-te o abismo, nadas no sofrimento como um peixinho mas não pertenço aqui, nunca pertenci. Por favor, cala-te. Não precisas de entender. Não quero explicar nem mais uma linha. Quero ir para casa. Quero chorar em paz. Quero respirar fora do lodo em que te agitas e resgatar todos os meus sonhos. Deixa-me partir, simplesmente. Não contribuo, nem mais um dia, para esta farsa.
Respiraste sobre mim, pela última vez, há minutos. Com um ar dramático e choroso, balbuciaste: “com que facilidade me arrancaste da tua vida”. Olhos nos olhos, respondi-te: “com que facilidade nunca me fizeste parte da tua.” Amorfa e em choque, aceitei aquele beijo tenebroso que encerrou uma história de vários anos, como se de uma brisa se tratasse. Deixei-te encenar e protagonizar a cena final, insípida e doentia, sem paz, sem verdade, sem respeito. Fiquei aliviada quando me soltaste e pude, finalmente, virar-te as costas, sem vontade de olhar para trás. Já não me podes magoar mais, mesmo que eu ainda não saiba quando vais deixar de doer em mim.
Sentada no avião, lavada em lágrimas, abracei-me por ter sabido resgatar-me a uma meia vida contigo, num limbo demasiado perigoso que tu trilhas de olhos fechados. No regresso a casa, caminho trémula, não consigo respirar; ainda me sinto perdida porque mergulhei inteira em nós e andei à deriva, sem o saber, mas em momento algum me abandonarei. Amei-te como mereço ser amada, as tuas sacanices a ti pertencem. No final de um dia que começou tão mal, respiro de alívio, apesar da catástrofe que tenho ainda de digerir. A esta distância percebo que muita coisa terrível aconteceu, é um facto, mas que podia ser muito pior: eu podia ser tu. Como diria a minha avó: “Fosga-se”!
Alexandra Vaz