Com um suave movimento de costas, Luís acomodou-se um pouco melhor na cadeira. Esticou o pescoço um pouco mais para a frente, para ver melhor aquele texto. Como assim ainda não resultava, inclinou o écran do portátil um pouco menos. Agora sim, tornara o cansaço de tantas horas de leitura de anúncios um pouco mais suportável. E recomeçou a leitura.
- Pois!... Onde é que eu já li isto?
Ouviu a chave a penetrar a fechadura. Olhou instintivamente para o canto inferior direito do écran.
- Dezanove e um. É Joana! Hoje chegou à tabela.
Luís continuou a ler. Joana continuou a entrar. Encontraram-se dali a instantes, na sala, junto ao portátil.
- Olá querido. Estás bem?
O indicador e o médio da mão esquerda dela saltitaram na cabeça dele.
- Hum!...
A cabeça dele abanou num sim de pequena amplitude, para não perder a linha de leitura.
- Encontraste alguma coisa de jeito?
- Tudo sem jeito!
- Nada!? Nem unzinho? Nem uma aproximação?
- Para pessoas, nada. Só há oportunidades para seres alienígenas.
- Lá estás tu… Algum desses anúncios há de ser minimamente, mesmo que longinquamente, compatível com a tua profissão, com as tuas capacidades. Tornaste-te pessimista?
- Não, nada disso. E hoje cheguei a uma importante conclusão: estes anúncios não são escritos por pessoas, nem são para pessoas. É mesmo negócio de alienígenas.
- Mas os anúncios são, na sua maioria, escritos por psicólogos e técnicos da área do trabalho e das organizações, que trabalham nas empresas de recrutamento e seleção de recursos humanos. São bastante elaborados, do ponto de vista técnico.
- Se acreditas no que dizes estás bem enganada. Isto é de extraterrestres.
- Ok, vá lá, explana a tua descoberta, a tua tese.
- Se gastares um tempo a ler anúncios de emprego, sem preconceito, sem qualquer necessidade objetiva de conseguires um emprego e dessa forma ganhares dinheiro para a sopinha, como és uma menina esperta, logo perceberás que os anúncios são todos iguais. Se são escritos por esses psicólogos e técnicos que disseste, andaram todos na mesma escola, com os mesmos professores, com os mesmos livros e trabalham todos no mesmo sítio. Produzem quilómetros e mais quilómetros de anúncios, que a julgar pela quantidade, será mais a oferta de trabalho do que a sua procura, embora os números oficiais e aquilo que vemos, na rua, nas pessoas, seja bem o contrário. Mas a melhor parte é esta: quem é que estes imensos anúncios procuram? Seres que não existem nesta terra. Hoje consegui traçar o perfil do trabalhador que estes anúncios procuram. Se o encontrares, foge dele, que não é humano e poderá ser perigoso. Trata-se de um jovem, recém-formado, dinâmico e ambicioso, com espírito de iniciativa, com elevado sentido de responsabilidade, com boa capacidade de comunicação, de análise e de resolução de problemas, com facilidade de relacionamento interpessoal e com espírito de equipa, capaz de trabalhar sob stress, com carta de condução e viatura própria, e que simultaneamente tenha experiência profissional comprovada, disponibilidade imediata e que esteja totalmente disponível para a empresa, a qual lhe oferece integração em equipa jovem e dinâmica, possibilidade de progressão na carreira, contrato a termo, e remuneração atrativa dependente do desempenho, ou traduzindo, toma lá quinhentos euros e dá-te por satisfeito enquanto não voltas para a rua. Nunca ouviste falar de motivação, de satisfação, de precaridade, de envelhecimento da população, da necessidade natural de equilíbrio, estabilidade e segurança, de produtividade? E quem tem mais possibilidade de conseguir o trabalho, quem é? É aquele rapaz, desembaraçado e prestável que é irmão da amiga do primo da tia do sogro do amigo. É esse, exatamente, que para não deixar ficar mal toda aquela preciosa fileira familiar, fará tudo e mais alguma coisa, sobretudo na parte da capacidade de trabalhar sob stress. Joaninha, este país está um manicómio e na porta tem uma tabuleta onde pode ler-se: “Uns já cá estão; os outros vêm a caminho.”.
- Percebo que estás muito bem-disposto. E não sei porquê, mas a tua boa disposição deu-me fome. Não comias qualquer coisinha?
- Talvez, já que ofereces. E se eu me tornasse psicólogo ou técnico, desses que escrevem estes anúncios? Está provado que sei escrevê-los, está provado que sei a quem dar os lugares, está provado que sou bem-disposto. E deve dar bom dinheiro. Que achas?
- Melhor seria se tu fosses o patrão, o empresário, o dirigente, o gestor, o CEO, o qualquer coisa que lhes encomenda os anúncios.
- Para isso tenho excesso de habilitações. Humor acima do limite.
Fernando Couto
Imagem do filme La Pecora Nera (A Ovelha Negra)