Foto: Drip - Peter
As gotículas de água, que pendiam dos nós do arame farpado, denunciavam o fim de mais um aguaceiro. Expostas aos raios de um sol pouco atrevido, tímido até, serviam de espelho à luz que se refletia como uma palete de cores variadas. Fascinada com o brilho colorido das gotas de água, lá se deixou ficar a uns passos da vedação que a separava do mundo e lhe roubava a liberdade. Sentia-se abençoada por usufruir daquela beleza num lugar assim.
Tudo lhes era proibido. Não podiam rir, nem tinham razões para o fazer. Não podiam ser felizes, nem tinham esperança de vir a sê-lo. Só a morte circulava livremente por ali. Condescendiam, porém, e deixavam-nos sobreviver a troco de trabalho duro e indigno.
Estática, encharcada e com os ossos amolecidos, tão pouco defendidos por roupas e carnes, apenas pele de envelhecimento temporão, em silêncio para não quebrar o condão, contemplava-as. A uma em especial. Enxergou-a por ser maior do que as outras e obstinada em resistir à queda que lhe acabaria com a existência quando se precipitasse no chão. A brisa que soprava abanava-a, mas não a desprendia. Admirava aquela minúscula formação da natureza e a força com que resistia a ser destruída. Viu-a crescer em tamanho e à medida do seu desejo de liberdade. A pequena gotícula cresceu e tornou-se grande, tão grande, capaz de a acolher dentro da sua enorme bolha, elevá-la à altura da vedação e levá-la pelos campos verdes até ao rio inatingível, apesar de tão perto. Banhar-se-ia nas águas limpas e descê-lo-ia até a um lugar seguro e calmo. Não mais precisaria de sonhar com a liberdade que é coisa que não deve ser sonhada, mas vivida como coisa real.
A gotícula começava a fraquejar, perdeu a forma arredondada e ganhou aparência de lágrima. Aproximava-se da rendição, estatelar-se-ia no chão. Não podia deixar que ela caísse, com ela levaria o seu sonho de liberdade. Deu um passo, pesado e lento, mas determinado. Arrastou a custo os pés na lama, ainda faltavam alguns metros, mas salvaria o seu sonho.
Os gritos dos brutos para que se afastasse da vedação não a interromperam, na verdade, nem os ouviu. Aprendeu a não os ouvir, o silêncio protegia-a daquelas vozes duras que tantas vezes a feriram.
Com um brilho chamativo a gota de água continuava lá a debater-se para se manter ligada ao arame e, ela cada vez mais próxima, mais um passo e poderia recolhê-la na mão e deslizar para longe. Mas, que dor era aquela? Queimavam-lhe as costas, faltavam-lhe as pernas. Tombou sem forças no solo enlameado cor de sangue. A vedação abanou e a gota de água desceu suavemente como uma carícia no rosto da infeliz sonhadora.
O grito dos brutos há muito que se calaram em Auschewitz, mas o gemido dos vencidos continua a ouvir-se no silêncio incomodativo do lugar. Nos campos de concentração, esses buracos negros da humanidade, não há vazio, envolve-os um silêncio repleto de medo, indiferença, indignidade e todos os demais adjetivos que nos possam envergonhar.
Um silêncio povoado de dor.
Cidália Carvalho