10.11.11

 

Aqueles 20 metros que distanciavam o 5º andar onde vivia e o chão que pisava todos os dias para levar as crianças à escola, separavam a minha ansiedade entre a vida e a morte. Começava a evitar ir à varanda, pois sempre que isso acontecia, pensamentos, que na verdade não desejava, assolavam-me e permitiam-me questionar se não seria mais fácil acabar com tudo ali mesmo. Parecia tão fácil, tão acessível, tão rápido! Aqueles 20 metros definiam a diferença entre estar vivo e não estar, entre sofrer e não sofrer, entre sentir e deixar de o fazer. As crises de ansiedade começavam a ser mais regulares, a falta de ar, a frustração de não conseguir atingir a paz de alma que desejava. A crise, as dificuldades económicas, pareciam motivos insuficientes para que tais pensamentos navegassem em mim, mas o cansaço fala muitas vezes mais forte e retira-nos o discernimento que se quer coerente em situações mais difíceis. Deixei de ir à varanda. E se o fazia, não me aproximava do muro que me permitia abeirar dos metros que me separavam do chão, e quando o fazia olhava para o sol, ou as estrelas, e permitia-me admirar a beleza que me rodeava. Quis viver. Escolhi viver. E atravessar esses 20 metros, de elevador ou usando as escadas, e continuar a levar os meus filhos todos os dias á escola… permiti-me continuar a vê-los crescer e ter a certeza de que aqueles sorrisos, o brilho do sol, ou a luz das estrelas me bastavam para ser feliz.

 

Sónia Pessoa

 

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20.10.11

 

A determinação a comandar os passos. Os passos mais rápidos à vista da ponte. À vista do fim. Observa o rio que corre lá em baixo, calmo, silencioso, não fossem os reflexos prateados da lua a denunciar os leves movimento das suas águas e dir-se-ia parado. Ela, sempre turbulenta, é atraída por esta calmaria. Lá em baixo, as águas calmas e prateadas fascinam-na.

Afasta-se do gradeamento, olha em volta. Ninguém! Foi assim toda a sua vida e é assim no seu derradeiro momento de vida. Ninguém!

Tira os sapatos e alinha-os um com o outro. Um saco com o telemóvel e o bilhete de identidade colocado ao lado dos sapatos. O alinhamento dos objetos, num momento destes, é patético de insignificante, mas continua a querer pôr ordem à sua volta.

Sobe para o gradeamento, olha novamente o rio.

Lá em baixo, as águas calmas e prateadas chamam-na. Aproximam-se. Sente a força da gravidade. Luta contra essa força. Quer recuar, sentir novamente os pés em cima da ponte, dominar os seus movimentos. Tarde de mais. Sente frio. Tem medo.

Vê as águas calmas e prateadas abrirem-se. Engolem-na!

 

Deitada no chão. O rio de águas calmas e prateadas ali ao lado. Cabeças debruçam-se sobre o seu corpo, movimentos rápidos sem som, uma luz azul a acender e a apagar. Parece-lhe estar no centro desta agitação. Fecha os olhos.

 

De volta à vida. O renascer é doloroso. Odeia-se pelo insucesso, desilude-se mais uma vez consigo mesma, zanga-se por a terem resgatado. No hospital todos se empenham numa luta para lhe salvar a vida. Uma luta na qual não quer participar. Os profissionais da saúde trocam olhares, de preocupação umas vezes, de esperança, outras. Zelam, observam, cuidam dela. Não desistiremos, garante-lhe uma enfermeira. Sente-se acarinhada. Rende-se.

Os outros doentes olham-na como se fosse diferente, comentam o seu caso, “quis pôr termo à vida”. Enganam-se. Ela também se enganou. Não se pode acabar com a vida onde ela não existe. Não quis acabar com a vida, quis acabar com a morte que havia dentro dela. Enganou-se quando pensou que a vida se esgotava nas contrariedades, nas angústias e tristezas que tantas vezes a assaltavam, ou na solidão que se lhe impunha. Enganou-se quando optou, obsessivamente, por se magoar mortalmente. Não se recorda de alguma vez se ter esquecido de si e ter olhado à sua volta. Nunca cativou ninguém, não conheceu a gratidão, o amor, a amizade.

Interiormente, tem muito trabalho para fazer e, quer fazer, porque não lhe salvaram partes do corpo - salvaram-lhe a vida.

 

Cidália Carvalho

 

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30.12.10

 

Sampaio (1991), ao falar da adolescência afirma que esta é “uma fonte inesgotável de criatividade individual e familiar, um cenário de trocas afectivas intensas e onde a vida e a morte surgem constantemente. É neste quadro complexo que tantas vezes surge a tentativa de suicídio”.    

O suicídio é uma questão muito complexa, que desperta uma grande onda de angústia, na medida em que levanta a questão do nosso poder sobre a morte. Quando o suicídio surge na adolescência, a inquietação é ainda maior, levantando a questão de como é possível numa fase de descoberta e de encontro com o mundo, acontecer um tal desencontro, que leve a que a única alternativa perante o sofrimento, seja a procura da morte (Santos e Sampaio, 1997).

Tal como refere Shneidman, coexistem no gesto auto-destrutivo vários factores: uma pressão (interna ou externa) sobre o adolescente; uma dor psicológica insuportável (para a qual urge encontrar uma solução); e uma perturbação que pode assumir diversas formas psicopatológicas. Neste contexto, o gesto suicida surge como uma estratégia desesperada para pôr fim a uma tensão difícil de controlar, num individuo vulnerável devido a factores predisponentes, com dificuldades na evolução biográfica (abandonos, perdas, etc.) e perante o qual surgiram factores precipitantes que desencadearam o gesto suicida (conflitos, rupturas, insucessos, entre outros). A experiência clínica nos jovens mostra-nos que os comportamentos suicidários correspondem não só a momentos de crise individual, uma espécie de falência nas tarefas de desenvolvimento, mas também são uma forma de comunicação poderosa; um processo ambivalente e paradoxal de procurar uma mudança no contexto de vida. Existem inúmeros significados e motivações, e qualquer que seja o grau de intenção, ele exprime sempre dois desejos poderosos: acabar com aquilo que faz sofrer e restaurar a identidade (SPS, 2006).

Para Sampaio (1991), a tentativa de suicídio na adolescência surge então numa perspectiva tripartida, por um lado individual, relacionando-se com as vivências do adolescente; por outro lado familiar, no sentido de uma visão longitudinal da história natural da família, considerada na dimensão mais alargada; mas também numa perspectiva social, referente ao enquadramento social do jovem. A tentativa constitui-se como um triplo fracasso nestas vertentes, na sequência da falência de outras formas de resolução da crise. Para este autor, a tentativa de suicídio adolescente surge “após uma impossibilidade de reorganização estrutural, isto é, o processo de desenvolvimento não avança e há um bloqueio, uma situação de instabilidade a partir da qual se torna necessária a intervenção terapêutica”.

De facto, verifica-se que, de forma geral, as famílias de adolescentes suicidas revelam elevados padrões de rigidez, de hostilidade conflitualidade marcada, bem como de intolerância à crise.

Neste sentido, a intervenção terapêutica deverá passar, não só por uma abordagem individual com o jovem, como também uma intervenção junto da família ou rede de suporte do adolescente em questão. É pertinente salientar o papel da família, pois fornece o suporte afectivo que os adolescentes necessitam, quer para superar este período de tristeza, quer para os incentivar no processo terapêutico necessário.

 

Diana de Morais Ribeiro

(Articulista convidada)

 

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23.12.10

 

O carro parou. Pelos movimentos dos seus colegas de viagem percebeu que já tinham chegado ao destino. Uns segundos depois ouviu o pesado portão subir, lentamente. Fixou aquele som. O carro avançou para voltar a parar um pouco mais à frente, para a habitual verificação e troca de papéis. Recomeçou a marcha para vencer o lanço final, até ao pátio.

A porta abriu-se e a luz forte do Sol do início da tarde foi de imediato ter com ele, envolveu-o, querendo aquecê-lo.

- Regressaste a casa. Vamos lá, desce.

Ergueu-se lentamente. Doíam-lhe as entranhas, doía-lhe o corpo, sentia-se virado do avesso, como se a sonda ao sair tivesse trazido tudo agarrado a si. E aquele sabor horrível na boca. Doía-lhe o coração, doía-lhe o espírito, doía-lhe a alma.

Desceu. Rapidamente a porta do carro celular foi fechada e o guarda pegou-lhe no braço. Sentiu carinho naquela ajuda para caminhar.

- Para onde vou?

- Para já vais para a enfermaria. Depois eles lá te dirão se ficas lá, se voltas para o teu “quarto”.

 

Entrou na enfermaria e sentou-se. Mas logo o enfermeiro chamou.

- Então, foste lavar as tripas? Gostaste da experiência? Mas o que foi que te deu para comeres vidro e detergente?

António - o 643, permanecia em silêncio.

- Ao menos foste passear. O passeio é que foi curto e rápido. E deixaste-nos muito preocupados, sabes? Mas já estás de volta. Agora temos é de tratar de ti.

António pousou a cabeça entre as mãos. E perguntou para si mesmo: - Porque não me deixaram morrer?

- Para já ficas aqui na enfermaria. Vais ficar aqui ao lado, com o 317. Dás-te bem com ele?

António acenou que sim, sem separar a cabeça das mãos, sempre a olhar os joelhos. A cabeça latejava-lhe. Quase sem forças perguntou:

- E quando volto para a ala?

- Não sei. – Respondeu o enfermeiro. E continuou logo depois:

- Daqui a pouco o médico vem falar contigo, ver como estás, e depois ele decidirá.

- Não quero voltar à ala! Eles vão dar cabo de mim.

- Tens muitas dívidas, é? Tens mais dívidas que juízo.

 

António conseguiu deitar-se. Luís - o 317, fixou o olhar em António, em silêncio, desde que este passou a porta.

Estendido, António pensou no que se passara no gabinete do médico, que o observara com muita atenção e cuidado. Disse-lhe que iria ficar bem, que dali a uns quatro dias estaria em forma. Pediu-lhe que falasse com o psiquiatra, que viria na manhã seguinte. Deu-lhe um cartão com um número de telefone, gratuito, da Voz de Apoio – para ligar se quisesse falar com alguém, alguém fora do estabelecimento prisional. Talvez ligasse.

Mas para já o que o preocupava era o regresso à ala. Não tinha como pagar as dívidas e sabia o que lhe estava destinado. Iriam continuar a usá-lo, sexualmente. Sentia medo, muito medo – mas não podia exprimi-lo, não podia mostrá-lo. E sentia culpa, muita culpa, por tudo o que consigo se passava. Sentia-se um ser miserável, repugnante, merecedor de todas as sevícias. Não aguentava uma vida assim, dois anos de sofrimento, sem ninguém cá fora que fosse um objectivo, que lhe desse força para aguentar.

 

Se tivesse morrido, estaria tudo resolvido. Ou talvez não estivesse. Estava muito confuso e cada vez com mais dúvidas.

Mas não queria voltar para a ala – eles estariam à sua espera. E não fora essa a pena a que o juiz o condenara.

Se ao menos conseguisse dormir um pouco… Afinal era noite de Natal, não de morrer.

 

Fernando Couto

 

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20.12.10

 

Era mais um dia…

Um dia normal de trabalho no Serviço de Urgência…

Doentes e mais doentes (Uns mais doentes que outros!), muitos velhos e alguns novos, em macas e em cadeira-de-rodas… tantos que a certa altura já se torna impossível chamá-los a todos pelo nome!

Era Inverno… (São as gripes e as Pneumonias, é assim nesta altura!)

Era mais um dia…

Era mais um doente…

Tinham ligado a avisar: Ia chegar um doente à Sala de Emergência: uma tentativa de suicídio por enforcamento, um homem novo, disseram, vinha com os bombeiros.

Estávamos à espera.

E a sala tocou… Deixámos tudo o que estávamos a fazer e corremos à Sala de Emergência… (O que iria encontrar? De onde vinha? O que o levaria a fazer isto?)

Entrei.

Lá estava ele, um corpo inerte, frio, gelado como o ar que vinha lá de fora… (Não há nada a fazer!... Faleceu.)

Não trazia identificação. Fora encontrado em casa pelo rapaz do café que todos os dias lhe ia levar o tabaco. Devia ter entre os 35 e os 40 anos, mas a roupa suja e a barba por fazer faziam-no parecer mais velho. Era alto e bem constituído, apesar do aspecto emagrecido. Tinha o corpo tatuado e num dos braços a frase – Haverá sempre um amanhã! Percebi que tinha um tumor da laringe localmente avançado, que o impedia de se alimentar a não ser por uma sonda, que o impedia de falar e de respirar sem ajuda de uma traqueotomia. Estava preso quando a doença lhe foi diagnosticada, foi operado, mas a doença progrediu rapidamente. Recusou quimio e radioterapia. Pediu para morrer em casa, na velha casa onde tinha passado a infância com a mãe, antes de esta o deixar sozinho no mundo (provavelmente a única altura da vida em que tinha sido feliz e tinha feito alguém feliz!).

 

Joana Gonçalves


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16.12.10

 

Ele costumava chegar a casa do trabalho à hora de jantar, embora o horário de saída fosse às 17 horas. Nesse dia, a hora do jantar passou e, para estranheza da família, ele não chegou... A preocupação surgiu entre todos, mas como o telemóvel ainda não era uma realidade, foram jantando sem ele, sempre na esperança de o ouvir chegar.

Jantaram com calma, arrumaram a cozinha (deixando um prato limpo na mesa e a comida no tacho) e reuniram-se em frente à televisão, como era costume. Tudo isto e ele sem chegar. "Mãe, onde está o pai?", diz a mais nova, estranhando a ausência inesperada, "deve estar a chegar", diz a mãe enquanto se tenta mentalizar de que nada está a acontecer. No entanto, a hora de dormir chega e dele, nada.

Os dois filhos deitaram-se e, com a ajuda das palavras de conforto da mãe, acabaram por adormecer. A mãe, no entanto, preparou-se para uma noite acordada, de vigília, à espera de notícias, de alguma informação, de qualquer coisa que a ajudasse a perceber o que se estava a passar. Em silêncio, passou a noite de janela em janela, com o pensamento a ser bombardeado por um turbilhão de ideias aterrorizadoras.

As horas passaram e o dia nasceu sem que o telefone tenha tocado uma única vez, sem uma única pista ou indicador. Toda a família desesperou... De certeza que aconteceu alguma coisa, mas o quê? Foi feita uma chamada para o trabalho dele, "ele ontem a que horas saiu daí?", pergunta a mãe, "ele ontem não veio trabalhar", respondem do outro lado... "Ele ontem não foi trabalhar", repete a mãe aos dois filhos, “ele ontem não foi trabalhar”... “Temos que o ir procurar”.

 

Não demorou muito até o filho o encontrar na garagem. Mas já não havia nada a fazer... Restava a tristeza, o desespero e a raiva... A incerteza do amanhã, a escuridão que rapidamente preencheu o dia-a-dia desta família.

Nos anos que se seguiram, completamente bloqueados pelo acontecimento, reviveram os últimos momentos juntos, as últimas frases, a forma como tudo funcionava, antes. E, desse bloqueio, foi-se tornando claro que todos tinham sido avisados. Todos eles recordaram as ameaças feitas ("isto um dia acaba de vez"), os comportamentos estranhos, o mal-estar generalizado e o afastamento da família. Mas nessa altura, já era tarde demais.

 

Ana Gomes

 

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9.12.10

 

- Gosto muito de ti.

 

A frase, dita à mesa do café, tão difícil de pronunciar entre portugueses adultos, carrega um peso tal que nos faz questionar intenções, intensidades e consequências. A quem a ouve, mas igualmente a quem a diz.

 

Fácil – tão fácil!- é dirigir as mesmas palavras a um gato, a uma criança, ou colocá-las na boca de qualquer personagem de romance. Porque nestes casos, quem a ouve ou lê não questiona, pelo menos directamente, não questionando portanto quem a diz ou escreve.

 

“Gosto muito de ti”. Demorei alguns segundos a responder.

 

- Eu também tenho uma grande estima por ti.

Propositadamente formal e defensiva, a resposta pretendia baixar intensidades, balizar intenções e prevenir consequências.

 

Tudo isto se passou há muitos anos, mais de 40, quando a manifestação de um sentimento tão forte entre adolescentes era difícil. Entre adolescentes do mesmo sexo era impensável. E era “proibida” se fossem do sexo masculino.

 

Se acontecesse hoje, passados mais de 40 anos, seria diferente?

 

L. matou-se. Não cometeu um acto desesperado e, muito menos, tresloucado. Não pôs termo à vida. Não se suicidou. Não. L. matou-se. Rebentou com os miolos e fez parar um coração a transbordar de sentimentos e desamores. M A T O U - S E.

Que do tempo das respostas propositadamente formais e defensivas me arrependo eu.

 

L. matou-se porque era homossexual num pequeno mundo faz-de-conta, no qual todos os homens eram machos e todas as mulheres eram fêmeas.

 

Antes de se matar – soube-o mais tarde – L. procurou os amigos e a todos disse a frase “proibida”. Com o passar dos anos, torna-se cada vez mais claro para mim que a frase não estava completa. “Gosto muito de ti. Diz-me que gostas de mim.” era a frase que eu deveria ter lido nos olhos do meu amigo.

 

E se eu, acobardado na resposta propositadamente formal e defensiva, lhe tivesse lido o olhar? E se eu lhe tivesse dito, porque era verdade: “ Também eu gosto muito de ti”?

 

José Quelhas Lima


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2.12.10

 

Nunca senti medo de envelhecer estando contigo. Casámos em segundas núpcias, com meio século de vida. Tu tinhas estado casada, há muitos anos atrás, com um homem que te abandonou, sem uma palavra, poucas semanas depois do vosso matrimónio. Eu tinha vivido tranquilamente, quase duas décadas, com a mãe do meu único filho, mas a morte reclamou-a cedo demais. Temos sido felizes, eu e tu. Tomas conta de mim e, nessa dádiva, fazes-me sentir importante e amado. És uma força da natureza! Não paras por um instante, levas o mundo à tua frente, com força e amor.

 

Já temos mais de setenta anos. Estou quase surdo. Vivo com um cancro na próstata há mais de dez anos, que parece coabitar no meu corpo, sem pressa de me levar. Tu começaste a cair em todo o lado, sem razão aparente. Corremos médicos, ouvimos opiniões e diferentes diagnósticos. Vi-te piorar de dia para dia, assustada, e eu incapaz de te sossegar… Não me lembro que nome esquisito o especialista proferiu mas, trocando-o por miúdos, disse que tinhas a doença do neurónio motor. Lembro-me de ter pensado que não devia ser assim tão grave. Afinal, se temos milhões de neurónios, que mal poderia causar apenas um? Lenta e gradualmente, deixaste de andar, de falar, de mexer parte do teu corpo. Lá em casa, deixamos de poder atender o telefone: eu não o ouvia e tu já quase não falavas… O meu filho, que sempre me excluiu da sua vida, aproximou-se novamente. Fiquei feliz, sabes? Durante anos, supliquei tanto para poder vê-lo e às minhas netas e agora, achei que em face do que atravessamos, ele tivesse mudado. Acreditei que neste momento, particularmente difícil, a família unir-se-ia. E eu precisava tanto, tanto de apoio…. À medida que pioraste, fui percebendo que não tinha força para cuidar de ti. O meu filho e a minha nora sugeriram um Lar… um sítio onde fosses bem cuidada e eu pudesse estar ao teu lado. Não aceitei a ideia com facilidade. Não queria sair da nossa casa, não queria que te sentisses perdida e usurpada… O meu filho libertou-me do peso de algumas decisões; assumiu-as e fez tudo o que podia: pediu-me que assinasse alguns papéis que o tornassem meu representante, para eu poder estar contigo sempre que possível. Visitamos alguns lares, não gostei de nada do que vi: desumanos, caríssimos, destituídos de carinho e dignidade. Não te queria num sítio assim…. Depois de uma busca incessante, e por sugestão da minha nora, fomos para Gaia. Segundo ela, não havia melhor do que aquilo. Pediram-nos tanto dinheiro…. Felizmente, fomos poupados e tínhamo-lo.

 

Disse ao meu filho que ia manter a nossa casa. Que me saberia bem ir lá com frequência, cuidar do jardim, cheirar as nossas coisas…. E que, se não te desses bem no lar, te trazia para casa novamente e arranjava apoio domiciliário. Mereces o melhor. Fizemos a mudança. Instalamo-nos no lar, nós e o inferno…. Não pudemos ficar juntos. Adormecemos e acordamos juntos durante mais de vinte anos, mas ali fomos impedidos de o fazer… Custou-me tanto e sei que a ti também… Tentei arduamente adaptar-me mas cada dia que passava era pior do que o anterior. Tu choravas angustiada, detestavas aquilo. Entrei em colapso….Tomei a decisão de voltar para casa. Afinal, ainda tínhamos dinheiro suficiente para eu poder cuidar de nós, com ajuda. Para te poder devolver a dignidade que merecias até ao fim da tua vida. Pedi ao meu filho os papéis das nossas contas bancárias, os documentos e tudo que ele havia guardado. Ele evitava atender o telefone, recusava-se a estar comigo. Ficou muito chateado quando lhe comuniquei a nossa decisão de sair do lar… Fui ao banco. Não temos um cêntimo…. A minha nora encarregou-se de deixar as contas a zero, “para ajudar os velhinhos” que nunca viram esse dinheiro… Fui a nossa casa, está vazia…. Segundo os vizinhos, no mesmo dia em que nos deixaram no lar, o meu filho, a sua mulher e as suas filhas, esvaziaram-nos a casa, levando tudo o que lhes interessou. Não temos nada, mulher, nada. Tantas vezes me avisaste. Tantas vezes me pediste que tivesse cuidado, que resguardasse o meu coração, porque o meu filho e a minha nora me iriam magoar sempre que eu deixasse…. Sabes o que me custa mais? Ter deixado que te magoassem a ti também.

 

Estive contigo ainda há pouco. Já não dizes nada, já mal te mexes. A mobilidade que ainda te resta de um braço, permite-te – tentar -  escrever, devagarinho… Disse-me o médico que vais perder o controlo completo do teu corpo, até ficares presa, absolutamente consciente, dentro desse corpo que não te obedece, até ao fim… Não fui capaz de te dizer que não tínhamos um cêntimo nem em que estado estava a nossa casa… não fui capaz de te dizer que sempre tiveste razão… que me amaste de uma forma pura e humana e eu retribuí, falhando contigo tremendamente… Dei-te um beijo e deixei-te a dormir. Andei desnorteado pelas ruas, dei por mim aqui, nesta ponte nova, mais uma que une Gaia ao Porto. Sinto-me um farrapo humano… Já nada me resta e não suporto a ideia de te perder também. Perdoa-me por não ter sido capaz de cuidar de ti como cuidaste de mim, até a saúde te faltar… Brevemente, estaremos juntos, num lugar onde te verei apenas sorrir e ser feliz. Sem dor, sem doença. Espero lá por ti, sou demasiado cobarde para ser o último a partir. Por isso agora, sucumbo. Vou mergulhar no Douro e deixar que a água me leve e lave todos os meus pecados…

 

Alexandra Vaz

 

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29.11.10

 

Não sei que horas eram. Sei que era noite. Nos últimos meses as horas só se tornavam relevantes quando não passavam e o desespero era maior que o desespero normal que sentia. Sentia o seu peso mas não importava se eram 3 da tarde ou 3 da manhã. Não queria que o dia acabasse pois não era uma questão de luz ou de compromissos. Só queria dormir. Quando se dorme a dor desaparece e com ela a ansiedade, o desespero e a angústia. Os sintomas de uma depressão major estavam todos lá. Havia vezes em que o corpo doía sem ser magoado. Sem toque. Havia outras que o corpo não sentia. Mesmo com toque. O pior era o acordar. Lembro-me de dizer numa consulta (já não sei de quê, porque durante meses e meses passei por Psicologia, Reiki, Psiquiatria e uns pseudo-terapeutas / médiuns), que a sensação que tinha quando acordava era a de bater numa parede de ansiedade. Nunca experimentei uma sensação assim. Adormecia do cansaço de chorar, passava para o vazio e despertava para uma sensação imediata de sufoco, o coração perto do ataque e o vómito perto da boca. Escusado será dizer que na maior parte das vezes levantar-me era um sacrifício muito alto. Em raras ocasiões, se não me levantasse depressa tinha a sensação que nunca o faria.

A vida constituía-se de farrapos. Vagas memórias de momentos e sensações, na sua maioria negativas. Pedi a todos os santos por uma solução, isto nas fases de religiosidade exacerbada, quando sabia no íntimo que a solução estava em mim. Esteve sempre lá. Eu sabia que sofria por amor. Sabia que só não era feliz porque não queria. Mesmo sabendo de tudo isso não tinha força para mudar, para avançar, para respirar, para viver. Mas não foram poucas as vezes que tentei, principalmente naqueles momentos em que o bater no fundo não era uma força de expressão dado que, no chão era onde o corpo se retorcia num choro constante de vários sentimentos que de tão intrincados não se conseguiam exprimir. Quantos murros nesse chão dei… Basta! – dizia para mim decidindo que esse era o último minuto de sofrimento. Mas não foi.

 

Não sei que horas eram mas sei onde estava. Fiquei em casa dos meus pais porque era uma daquelas noites em que um apartamento para uma pessoa só era um inferno privado. Não sei que horas eram mas sei onde fica a gaveta onde estava a faca. Não sei quanto tempo fiquei a olhar para ela, medindo o seu comprimento e as consequências de um acto. Estava sentado no chão, costas na parede, mangas arregaçadas. A faca passou impiedosa, cortando pele e carne expondo o sangue. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis… e perdi a conta. Lembro-me também da sensação. Estranhamente, ou não, em cada corte sentia-me… livre? Enfim. Ali fiquei.

O meu irmão encontrou-me, ou a minha mãe. Não tenho a certeza. O assunto não é tabu, mas também não é falado. Hoje, reconheço a validade do que fiz. Não que tenha sido certo, é claro, mas ainda hoje na varanda, com os meus filhos e com a mulher que amo, olhar para as cicatrizes que ficaram faz-me perceber que se não fosse por um momento de violência, se calhar nunca me tinha permitido ser feliz.

 

Rui Duarte

 

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25.11.10

 

À noite tudo é diferente. O Marco chegara a casa e jantava sozinho nessa noite. A televisão estava desligada. Pairava um silêncio denso entre o pensamento cíclico e o olhar vazio pregado na mesa. Por vezes lá ia mais uma garfada.

Acabara de discutir uma vez mais com a Leonor. Ela deixara-se ficar no parque por onde passearam no final de tarde desse domingo. Entretanto a noite caía. Caía Setembro. Caíam as folhas. Caía o calor. Tudo caía.

Marco já largara o garfo e mal tocara na comida. Entrelaçava agora os dedos das mãos por debaixo do queixo, fincando os cotovelos na mesa. Sempre o mesmo, pensava ele, sempre a mesma coisa!

Escureceu. Era noite fechada e Leonor não aparecia. Quando ela entrar por aquela porta vou dizer-lhe tudo! Desta vez está mesmo tudo acabado! Não aguento mais! É sempre a mesma coisa! Não aguento mais! NÃO! AGUENTO! MAIS!

 

O telemóvel interrompera-lhe a pesada modorra. Rodopiava, contorcia-se na mesa como se estivesse possuído pelo demónio. Tocava, gritava que se desunhava. Sofre, vaca! Sofre! Carregar naquele botão verde seria quase um exorcismo. Não atendeu. Levantou-se. Agarrou numa bebida branca qualquer. Foi vagueando pela sala de copo na mão. Dirigiu-se à varanda e por lá ficou, debruçado no gradeamento, fixado no horizonte. Avistava o reflexo do luar nas águas do Douro. Por vezes reparava distraidamente nas tijoleiras do pátio. Do décimo terceiro andar o chão não oferece boa nitidez. Trespassava-lhe uma vaga sensação de voo. Remirou, revirou mais uma vez a sua vida. Estacava aqui e ali em detalhes doentios. Ciúmes sim, mas haja medida! Balançava agora o copo vazio entre dois dedos. Deixou-o balançar lentamente, escorregando, até ficar suspenso pela borda. Olhou o chão e depois o copo. Saúde, Leonor! Abriu os dedos e viu-o a cair em câmara lenta.

A colisão foi brutal. O estrondo, estrondoso. E ali ficou ele durante uns minutos, imóvel, cravado naqueles despojos confusos, sem pensar em nada.

Começara então a soprar uma leve brisa fresca. Ergueu-se lentamente, agarrou-se ao corrimão da guarda da varanda, inalou profundamente e sentiu-se revigorado. Renascera ali. Vou-me embora! Agarro no essencial e depois venho buscar o resto!

 

O telefone toca de novo. É de novo a Leonor. Desta vez atende. As coisas têm que ser conversadas.

- 'Tou?!

- (Silêncio).

- Leonor! Estás aí?

- (Silêncio).

- Leonor, vá lá, responde! Temos que falar! Demoras? Anda para casa!

Ela solta qualquer coisa que não se percebe, com voz embargada, vacilante.

- Diz?! Não percebi! Anda para casa, Leonor! Vamos conversar!

- (Silêncio).

Ele cala-se também. Tenta perceber onde ela está pelos barulhos de fundo. Mas não consegue.

- Onde estás, Leonor?

- (Silêncio).

- Leonor?! Então? O que estás a fazer?

Com uma voz trémula mas decidida, Leonor diz:

- Sabes, Marco? Não sabia que a vista aqui de cima da ponte era tão bonita! Adeus!

 

Joel Cunha

 

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22.11.10

 

Há três semanas atrás acordei assim. No Hospital. Primeiro não percebi bem onde estava e ainda menos o que se passava; depois percebi, e ri-me. Ri-me tanto... de ódio, de raiva, de frustração. E por ser tão patético.

Quer dizer, nem consigo matar-me. E agora?

Tenho dias em que me sinto tão culpado por ter tentado. Afinal tenho uma família.

Noutros dias sinto-me apenas envergonhado porque penso que vão ver os cortes nos pulsos e fazer comentários. Quer dizer, cortar os pulsos é coisa de gaja. Um homem não faz isso. Um homem a sério mete uma caçadeira na boca ou atira-se para debaixo de um comboio. Mas eu havia logo de tentar cortar os pulsos... e falhar, claro.

Mas pensando bem há muito tempo que não me sinto um homem a sério. Por isso, só podia ter sido mesmo assim, à moda das mulheres e sem sucesso.

 

Falando de mulheres, a minha diz que preciso de ajuda mas eu não quero ajuda. Não quero nada e muito menos ajuda. Ela já não me diz nada e o mundo não me diz nada e quero que fiquem longe, muito longe. Houve uma altura em que ainda dei luta porque sentia dor mas julgava que a podia vencer. Enfrentei tudo sozinho e calado, como os verdadeiros homens fazem, sem chorar nem me queixar. Ajuda? Vou-me sentar à frente de alguém que não me conhece e chorar como um mariquinhas? E é isso vai resolver os meus problemas?

Eu fui educado como um bom católico e lembro-me do Padre me dizer que os suicidas vão para o Inferno e que são almas perdidas. Eu penso, ao menos será um Inferno diferente. Porque com este já não posso mais. E quanto a serem almas perdidas, mais perdido do que eu já estou não me parece possível.

 

E depois vem a minha mulher e pergunta-me num tom acusador:

- Fizeste isto para me magoar? Para me causar sofrimento, angústias?

Não, digo eu, baixinho. Fiz isto para deixar de me magoar. Para deixar de ter sofrimento e angústias. Tu? Tu não podias estar mais longe do meu pensamento. 

Talvez se eu ficar aqui deitado, sem me mexer, acabe por deaparecer. Por me dissolver numa nuvem de pó, sem ninguém reparar.

 

Dora Cabral

 

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18.11.10

 

A Mariana não foi ontem à escola, nem no dia anterior. Estranho. Pensei que estivesse doente e liguei para ela. Do outro lado da linha, um silêncio ensurdecedor: ninguém. No messenger, nada, absolutamente nada. E não, não era normal. Mesmo quando estávamos doentes, ficávamos sempre ligadas on-line. Havia sempre tanta coisa para contar: o rapaz giro que nos devolveu um sorriso, a professora de Matemática que exigia sempre mais de nós… Um dia na escola, para quem tem 15 anos, é mesmo uma eternidade, repleto dos acontecimentos mais importantes e decisivos das nossas vidas. Mas, e a Mariana?

 

“A Mariana partiu.” – disseram-me hoje os meus pais. Partiu? Para onde? Foi viajar e não me disse nada? Impossível! Nós partilhamos tudo… Até que, o peso da verdade imutável se abateu sobre mim. Senti-me esmagada e sem ar. A minha melhor amiga matou-se?!... O turbilhão de pensamentos embalados por emoções confusas tomou conta de mim. Como é que ela foi capaz de me abandonar? Eu, que preciso tanto da sua ajuda e do seu ombro sempre amigo. Que raio de amiga sou eu que não me apercebi de nada? Mas porque é que ela não me pediu ajuda? Porque é que não falou comigo? Oh… espera; será que até falou? Será que, quando dizia que estava farta de tudo e de todos, será que não estaria a exagerar, como eu pensei? Será que a tristeza que trazia nos olhos era mais intensa do que eu supus? Que culpa que eu sinto! E dói tanto! Quando a minha melhor amiga precisou mais de mim, eu não estava lá. Ou até podia estar, mas não estava atenta àquilo que era realmente importante. Tantas coisas que julguei, pensei, supus, sem nunca procurar a verdade. Tantas perguntas que ficaram por fazer e que agora me torturam. Mas agora é tarde, a Mariana já partiu…

 

Numa coisa tenho razão: a Mariana estava doente. Sim, sofria de solidão. E pela primeira vez na vida, sinto que ter razão é um vazio amargo e corrosivo. E de que serve… de que serve ter razão? Chega de perguntas… perdoa-me Mariana!

 

Liliana Jesus

 

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15.11.10

 

Abre lentamente os olhos. Há demasiada luz.

- Onde estou? – Pensou; - Morri? – Suspirou.

- Olá, como se sente? – Pergunta calmamente a enfermeira.

- Não morri? – Responde.

- Não, não morreu, mas quase. – Retalia a enfermeira.

Ana sente vontade de vomitar, começa a ficar agitada e sente cólera a invadi-la. Quer gritar, mas nem o grito de raiva consegue expulsar. O ar falta. Os enfermeiros acodem.

 

Trimmmm…

- Ah, estou? – Atende uma voz estremunhada.

- Boa noite. Estou a falar com a senhora Patrícia? – Pergunta uma voz estranha.

- Sim, é ela. Quem deseja saber? – Pergunta.

- Senhora Patrícia, ligamos do hospital. A sua filha Ana está cá internada. Pedimos que venha o mais rapidamente possível.

Num salto senta-se na cama.

- O quê? A minha filha?! Que aconteceu? – Pergunta com o coração sobressaltado.

- A sua filha está estável, mas pedimos que compareça por favor.

A meio da noite duas personagens lançam-se numa corrida louca para o hospital. Não há vermelhos que os impeçam. Os corações batem demasiado rápido para abrandarem num semáforo.

 

- A minha filha está aqui internada. Quero vê-la. – Atira Patrícia.

- Nome? – Remata alguém com impaciência.

- Ana – desespera a mãe.

- Aguarde um momento, por favor.

- Aguardar?! O que se passa com a nossa filha? - Pergunta um olhar assustado.

- Um médico já os vem atender.

Os olhos extravasam lágrimas. Patrícia sente-se ansiosa, angustiada, nervosa. A sua filha, a sua única filha.

- São os pais da Ana? – Pergunta o médico.

- Sim. Responde o pai, com a mãe nos braços.

- A vossa filha está agora estável.

- O que aconteceu, doutor? – Pergunta a mãe.

- A sua filha tentou suicidar-se com comprimidos.

- O quê?! Sui…suicidar-se? A Ana?! Não é possível – diz o pai

- A minha Ana? Porque faria uma coisa dessas? – Continua, aterrado.

Patrícia não reage. O seu mundo desaba. Há um grito que se espalha e a quebra por dentro.

- Como foi capaz? – Diz por fim.

Há confusão, alheamento e uma súbita mágoa naquelas duas personagens.

 

Ana, já não tem lágrimas. Continua desolada pela sua sobrevivência.

A raiva persegue-a.

- Quero morrer!!! Porque não me deixaram morrer?! – Grita angustiada.

- Os seus pais estão aqui Ana. Para a ver – diz a enfermeira.

Ana pára. O seu corpo gela. Os seus pais, aqueles que lhe deram vida estavam ali. E ela só queria morrer. O coração está em espera. Não bate. Sofre e tem medo. Medo do confronto com os seus progenitores. Ela não queria fazê-los sofrer. Só queria partir. De vez.

- Ana, como pudeste? – Pensou a mãe enquanto a olhava nos olhos.

- Filha – diz em vez.

Ana desata a chorar. Esconde os olhos, como quem esconde a culpa.

O pai abraça a filha e promete estar sempre lá, dizendo que ela não está sozinha. Ana sente ainda mais culpa.

A mãe fixa a filha. Sente culpa também. E raiva. Como pôde aquilo acontecer.

- Filha, que fizemos nós? Onde falhamos? – Pergunta desesperada a mãe.

- Patrícia, agora não. – Responde o pai.

- Vai tudo correr bem, filha. – O pai abraça de novo a filha. - Vamos conseguir ultrapassar isto.

O quarto permanece cheio de dor, culpa, remorsos, tristeza, vergonha, medo, raiva. Todos estão partidos à sua maneira. No meio de tanta dor, permanece no entanto o amor. Está ali, mesmo que nem todos o consigam olhar nos olhos.

 

Cecília Pinto

 

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21.11.09


 


Na noite de 25 para 26 de Outubro de 2009, durante a madrugada, um menino de 4 anos fugiu da casa dos pais, em Comines, pequena cidade Belga, depois de os ouvir discutir violentamente. Younes Jratlou, assim se chamava o menino, apareceu duas semanas depois, morto, no rio Lys, a 12 Km de casa, descalço e com pouca roupa, conforme informações dadas pelos pais quando se aperceberam que o filho tinha fugido.

As causas da morte não estão ainda apuradas, mas parece não existirem dúvidas quanto às razões que levaram o menino a sair para o escuro da noite, tantas vezes motivo de medos e pesadelos naquela idade, e a enfrentar, quase desnudado, o frio que já se faz sentir nas noites de Outono: acabar com o sofrimento de mais uma discussão entre os pais!

 

Procuro esvaziar-me de outros interesses e atenções, e concentrar-me no pequeno Younes, dar-lhe a atenção que não teve, precisava e, sobretudo, merecia. Este exercício de nada lhe vale e só a mim serve, para me ajudar a aceitar a situação.

Mas como poderei aceitar que alguém tão frágil tenha sido tão desprotegido e descuidado, justamente por aqueles que deveriam ser o garante da sua segurança? 

Perante a dor, como foi possível que a criança não tivesse procurado alguém que a confortasse e, desesperada, tenha posto a sua própria vida em risco?

Embora raro, o suicídio infantil existe e situações de stress com as quais a criança não sabe lidar, são factores de risco. O facto de as crianças não sentirem a morte como uma situação irreversível e criarem fantasias, achando que a vida é melhor depois da morte, é também um factor de risco. Por uma ou outra razão, objectivamente, não me parece haver dúvidas quanto à intenção do menino ao fazer-se à noite e ao aproximar-se do rio.

 

Estou em processo de luto!

 

Não sei como os pais do Younes estão a enfrentar a perda do filho, não sei nem quero ainda pensar nisso, este ainda é o momento de pensar no menino morto. 

 

Cidália Carvalho

 
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5.8.09


 


Já estão abertas as inscrições para as 2as Jornadas sobre PREVENÇÃO DO SUICÍDIO.


 


Auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett


Jardins do Palácio de Cristal, Porto


24 Outubro 2009


 

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19.6.09


 



Ao chegar à redacção disseram-me que aquela senhora esperava por mim.

Tinha aproximadamente 60 anos, muito bem arranjada, mas o que me chamou a atenção foi o ar triste com que me olhava.

Perguntou se tinha sido eu o autor da peça sobre o rapaz que se tinha suicidado. Respondi que sim, com um orgulho contido, imaginando que deveria ser uma parente, que me vinha agradecer o modo como eu tinha (re)tratado a vida do jovem.

Entregou-me um diário e ao mesmo tempo que as lágrimas lhe escorriam pela cara, disse “por favor leia o resultado da sua peça…”

Abri o pequeno livro e na última página podia ler-se o seguinte:

 

Peguei no jornal, como faço todos os dias. E lá estava, em grande destaque, o suicídio daquele jovem, que já ontem tinha visto na TV.

Contava a história, com todos os pormenores. Quando, como, onde e porquê que ele tinha feito aquilo. Tratavam-no com respeito. Falavam dele como se fosse a melhor pessoa do mundo, de quem nunca se suspeitou que fosse capaz de tomar uma atitude tão radical.

Confesso que as lágrimas me vieram aos olhos. Também gostava que, no dia que eu morrer, falassem assim de mim.

A ideia da morte já me persegue há muito tempo e ver que afinal de contas pode não ser um acto de covardia, mas sim um acto de coragem, fez-me suscitar de novo a vontade.

Sinto que não estou sozinho e que afinal não ficarei assim tão mal visto se acabar com a minha vida. É reconfortante ver que há pessoas que sentem o mesmo que eu e que depois de fazerem o que acham que devem, o que sentem que têm que fazer, são tratadas com respeito.

Na vida que levo ninguém me respeita, todos me catalogam, todos me viram a cara…

Se eu tinha qualquer tipo de dúvidas, posso dizer que foram dissipadas com este exemplo. E ainda fiquei a saber que há mortes que doem menos que outras. Isso era uma coisa que me assustava. Sinto que a notícia me deu uma força que eu achava que não tinha.

Está resolvido, até já escolhi a data e o local!

 


Percebi então o efeito perverso da minha peça. Como se escreve sobre um suicídio? Como suportar esta culpa? A quem pedir ajuda?


 

Filipa Pouzada

 

Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 00:17  Ver comentários (3) Comentar

5.5.09


 


Emprego e desemprego não são só estados sociais. É verdade que o emprego (em especial alguns empregos) dá estatuto social, mas também permite o desenvolvimento pessoal e a realização profissional. O indivíduo sente-se integrado num processo de desenvolvimento social para o qual contribui com o seu trabalho. O trabalho é remunerado e, por conseguinte, ter emprego é ter a possibilidade de adquirir meios para a sobrevivência, diversão, cultura e outras manifestações tão importantes ao equilíbrio do ser humano.

 

Se o emprego proporciona tudo isto, o desemprego rouba-o, muitas vezes de forma cruel.

Na hora de reduzir aos “custos com o pessoal”, a notícia: “- Lamentamos, gostamos muito de si, foi sempre um funcionário exemplar, mas a empresa necessita de reduzir custos...”, dói, dilacera.

O ter sido dispensado de uma actividade, não contarem com os seus préstimos, provoca em cada indivíduo uma sensação dolorosa e a maior parte das vezes associada a um sentimento de injustiça.

Para quê tanto esforço?! Horas extraordinárias sem remuneração?! Apenas e só o sentido do dever a ditar horas de permanência para além do horário!

 

A família que, a bem do trabalho, conformada com a ausência, aceitando que as férias sejam reduzidas a duas semanas, poderá não compreender o despedimento!

Angústias sentidas que, a certeza de tudo ter feito para ser um empregado exemplar não acalmam, pelo contrário, são dores difíceis de conter. Não dói a consciência mas dói a alma.

E aos poucos, a dor cede o lugar ao desalento. Instala-se a dúvida e põem-se em causa capacidades. Triste com o presente e assustado com o futuro, o indivíduo inicia processos de autodestruição podendo acabar, em alguns casos, no suicídio.

 


 

Cidália Carvalho

 
Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 13:19  Comentar

21.4.09

Para ver, ouvir e pensar (com tempo). E, porque não, comentar?


  








    








 








 








  


Cidália Carvalho


 

Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 22:09  Ver comentários (2) Comentar

28.2.09


  


Os caminhos percorridos, de mão dada com o vazio, são gélidos e sombrios…

Muitas são as almas que, sem saberem outra forma de vida, percorrem corredores de histórias vazias de conteúdo…

Vazias por não haver com quem partilhar.

Histórias de vidas que decorrem de uma forma incógnita por serem tão poucos, ou nenhuns, os que sabem ou conhecem o seu princípio, o seu meio ou o seu fim.

O sofrimento que fica escondido por aqueles que fingem um sorriso e o apagam sem dizer adeus…

A dor suportada de uma forma calada e conformada que acaba sem um possível aviso…

Demasiados rostos sem significado vagueiam à procura de compreensão e apenas permanecem insuportavelmente sós…

Questiono se a solidão permanente e forçada atira alguém para os braços do suicídio?

Pergunto se de um mito ou de um facto se trata, quando se afirma que a solidão é uma forma lenta de morrer?

A solidão retira a energia e a vontade de viver - será uma realidade?

Será com convicção que afirmamos que a vontade de morrer aparece naquele que não encontra uma identidade?

O desejo de sentir o último sopro, poderá ser provocado por falta de entendimento, compreensão e afecto?

Será a crença na força da natureza humana, para superar todas as dificuldades e adversidades, uma utopia?

 

Seja mito ou facto, realidade ou utopia, crença ou convicção, o suicídio abraça com mais força aqueles que se sentem sós e que estão sós.

 

Susana Cabral

 

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17.2.09

 


 


Os suicidas querem mesmo morrer?


 


Um suicida é uma pessoa tão comum como qualquer outra. O acto em si, não depende do sexo, cor, idade, estado civil, ou situação financeira do individuo, mas apenas dos seus sentimentos mais íntimos e profundos.


São muitos e variados os factores que podem levar uma pessoa a optar pelo suicídio.


Muitos suicidas comunicam previamente algum tipo de mensagem verbal ou comportamental sobre as suas ideias.


Quem opta por uma tentativa de suicídio poderá apenas querer chamar as atenções sobre si, ou poderá querer mesmo morrer. Mas a uma tentativa de suicídio corresponde, na maioria das situações, um sentimento ambivalente, uma profunda divisão interior entre viver e morrer.


A maioria daqueles que fazem uma tentativa de suicídio preferiria continuar a viver, mas não da forma como estão a viver, mas não com o sofrimento que sentem. E por regra, sozinhos, não conseguem encontrar caminho para a mudança, por isso é da máxima importância, nesses momentos, encontrar alguém que os ajude a descobrir o caminho de regresso à vida.


 


Isabel F


 

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