A ténue linha que separa a verdade da mentira é de tal forma fina que, muitas são as vezes em que se torna invisível, não se podendo evitar a promiscuidade entre as duas.
Desde muito cedo é-nos transmitido que é feio mentir. É com total embaraço e de rosto completamente ruborizado que ficamos quando uma das nossas crianças profere, diante de todos, a verdade, alto e bom som: “- É tão feio!” ou “- Não gosto.”.
Com um sorriso manhoso ouvimos os comentários feitos, entre dentes, que classificam a reacção da criança como uma falta de educação e é com pena que vemos que com facilidade as pessoas olvidam o estado puro de um ser humano.
A verdade é que a “educação” vai retirando a inocência e amarfanhando as resposta espontâneas e verdadeiras.
Em nosso redor e à medida que “crescemos” somos cercados com um arame farpado que nos limita e que acaba por nos ensinar como e quando devemos mentir.
A educação não nos permitir ferir a sensibilidade dos outros e, de repente, vemo-nos a agradecer, com um ar de eterna gratidão, um conjunto de louça verdadeiramente pavoroso que para nada serve. Escondemo-lo em caixotes, juntamente com outras “mentiras” que deixamos guardadas na garagem, não vá o diabo tecê-las ao sermos confrontados com o seu paradeiro.
A educação, as normas de convivência, são as prefeitas desculpas para as mentiras que diariamente vamos dizendo, de tal forma que até já não nos damos conta. Foi decidido que estas seriam as mentirinhas piedosas e essas de nada tem de errado, afinal é para o bem comum.
Não podemos destruir a auto-estima de ninguém, mesmo quando somos confrontados com o pior dos dilemas. Perante a questão de alguém que se encontra verdadeiramente nas nuvens com o seu novo vestido, “- Não estou fabulosa?”, o que fazemos? Deixamo-la ir e apresentar-se em público a parecer um verdadeiro desenho animado ou, por outro lado, arruinamos logo ali a sua ilusão com a tentativa de a fazer mudar de roupa?
Podem responder que existem formas de contornar estas situações, o que peço é que, por favor, me ensinem porque desconheço...
Muitas vezes, dizer a verdade significa magoar desnecessariamente... e essa sim, é uma verdade.
Mas onde fica o limite entre a “piedade” e a mentira pura e dura? Vamos sendo “enformados” na sociedade, de tal forma que de repente ficamos impedidos de dizer o que realmente sentimos e pensamos, e de expressar as opiniões que acabamos por guardar só para não magoar, para não ser mal-educados, ou não ser detentores de ideias “esquisitas”.
E sem sequer reflectir sobre isso, vamos cada vez mais respondendo, agindo, de acordo com o que nos é solicitado e com aquilo que esperam de nós.
Seria completamente descabido dizer a alguém que o seu cheiro é de tal forma mau que nos impede de respirar, ou dizer a alguém que só tem dores de dentes porque simplesmente tem uma higiene oral muito, mas muito, duvidosa. Em vez disso, dizemos com um ar muito sereno que hoje não nos sentimos muito bem e tentamos esconder as náuseas que sentimos. Ou ainda, com o ar mais profissional do mundo, dizemos à pessoa que tem de começar a escovar os dentes de uma forma “diferente” porque a que está a utilizar não resulta para o “tipo” de dentes que tem.
Ficamos “proibidos” de dizer aquilo que às vezes temos vontade, porque não encaixa no perfil daquele que se orgulha de ter uma boa educação e vemo-nos obrigados a mentir sem qualquer peso na consciência, ou penalidade, porque afinal só estamos a fazer aquilo que é correcto para não ferir a sensibilidade de ninguém e não sermos marginalizados.
E assim vamos vivendo, muitas vezes no limiar da verdade e da mentira, como as regras da mentirinha piedosa nos permitem.
Susana Cabral