24.1.11

 

“ (…) Mãe, já sei que estás magoada mas não me vires as costas. Tu não. Estou aqui fechado. Enlouqueço! Sabes bem que não sou culpado de tudo o que me acusam… Não te preocupas comigo? Não tens coração? Quando vens ver-me?”

 

A culpa foi nossa. Permitimos-te crescer impunemente. Cobrimos-te a retaguarda e, se calhar nesse gesto, deixamos-te a alma a descoberto, à mercê de um mundo que não conhecias. Protegemos-te “dos outros”, não os deixamos entrar no teu metro quadrado de oxigénio, mas não pensamos que irias procurá-los…. O teu pai encheu-se depressa. Não tolera falhas, tu sabes. Diz que lhe trouxeste problemas sérios pondo em causa o seu status. Que vergonha, o filho de um conhecido cirurgião, preso por roubo e tráfico de droga. Consumidor. Vendedor. Vil. Estou proibida de dizer o teu nome. Todos os dias, sento-me com o teu pai à mesa e sofro, sozinha, a dor da saudade que me faz carpir sem lágrimas… Não posso dizer-lhe que sinto a tua falta, sem ser duramente lembrada de todas as asneiras que fizeste. Das intenções, que nem eu sei entender… Calo o grito que se me prende na garganta.

Se calhar a culpa foi minha. Só minha. Nunca deixei de acreditar em ti. Cada vez que tinhas um ataque de nervos porque te recusávamos dinheiro, insultavas-nos, ameaçavas-nos. Roubavas-nos. Partias o que sobrava. Semanas depois, reaparecias, caías no meu colo e choravas. Pedias mil vezes desculpa, dizias-te arrependido. Eu fechava os olhos e cheirava-te como uma fêmea cheira a sua cria, com um amor transcendente e cego. Eras outra vez pequenino, o meu doce rapazinho, e tudo, tudo eu te perdoava nesse instante. Fi-lo mais vezes do que devia, mais vezes do que o teu pai imagina, ao longo dos anos. Não te poupei de nada, dei-te uma falsa sensação de segurança. Quando tentei travar-te, já era tarde.

 

No dia em que foste preso, vieste procurar-me. Já não te via desde que me tinhas agredido, quatro semanas antes. Recusei-te dinheiro, fui firme. E tu não aceitaste a minha recusa. O teu pai ficou fulo da vida quando acabei por retirar a queixa. Como, como pude perdoar um sacana que agrediu a própria mãe? Sei lá… porque o amo… porque o sinto nas entranhas… Deixei que me abraçasses. Choraste muito, juraste mais ainda. Tudo ia ser diferente, a tua vida ia mudar. Foste preso à porta de nossa casa, no momento em que entraste num carro que não era teu. Quando te vi a ser levado pela polícia, algo morreu em mim. Lembro-me de entrar na cozinha e remexer os armários. Encontrei um produto que a Esmeralda usa para matar os ratos da cave. Levei-o à boca. Estava farta de vírgulas, queria um ponto final.

Acordei, na curva de outra vírgula, no hospital. Ainda cá estou. Desiludi o teu pai pela minha “fraqueza de espírito”, sussurrou-me ele ao ouvido quando me visitou… Diz que herdaste de mim essa característica que te faz ser “reles e sem carácter”. Não tenho forças para retorquir. Não quero estar com ele. Não devo estar contigo. Como pode o amor ser, afinal, o mais temível dos carrascos?

E agora escreves-me cartas, que recebo às escondidas, pelas mãos da Esmeralda, como se fossem de um amante que devo manter na clandestinidade. O carimbo prisional relembra-me a angústia que carrego. A frustração de não poder inverter o sentido das coisas e alterar o presente. O teu. O nosso. Não sei quando irei ver-te mas não há um só dia em que não pense em ti.

 

“Mãe, não me esqueças… Não me abandones à minha sorte. Onde estás?”. Não percebes que estou aí, presa contigo?

 

Alexandra Vaz

 

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2.12.10

 

Nunca senti medo de envelhecer estando contigo. Casámos em segundas núpcias, com meio século de vida. Tu tinhas estado casada, há muitos anos atrás, com um homem que te abandonou, sem uma palavra, poucas semanas depois do vosso matrimónio. Eu tinha vivido tranquilamente, quase duas décadas, com a mãe do meu único filho, mas a morte reclamou-a cedo demais. Temos sido felizes, eu e tu. Tomas conta de mim e, nessa dádiva, fazes-me sentir importante e amado. És uma força da natureza! Não paras por um instante, levas o mundo à tua frente, com força e amor.

 

Já temos mais de setenta anos. Estou quase surdo. Vivo com um cancro na próstata há mais de dez anos, que parece coabitar no meu corpo, sem pressa de me levar. Tu começaste a cair em todo o lado, sem razão aparente. Corremos médicos, ouvimos opiniões e diferentes diagnósticos. Vi-te piorar de dia para dia, assustada, e eu incapaz de te sossegar… Não me lembro que nome esquisito o especialista proferiu mas, trocando-o por miúdos, disse que tinhas a doença do neurónio motor. Lembro-me de ter pensado que não devia ser assim tão grave. Afinal, se temos milhões de neurónios, que mal poderia causar apenas um? Lenta e gradualmente, deixaste de andar, de falar, de mexer parte do teu corpo. Lá em casa, deixamos de poder atender o telefone: eu não o ouvia e tu já quase não falavas… O meu filho, que sempre me excluiu da sua vida, aproximou-se novamente. Fiquei feliz, sabes? Durante anos, supliquei tanto para poder vê-lo e às minhas netas e agora, achei que em face do que atravessamos, ele tivesse mudado. Acreditei que neste momento, particularmente difícil, a família unir-se-ia. E eu precisava tanto, tanto de apoio…. À medida que pioraste, fui percebendo que não tinha força para cuidar de ti. O meu filho e a minha nora sugeriram um Lar… um sítio onde fosses bem cuidada e eu pudesse estar ao teu lado. Não aceitei a ideia com facilidade. Não queria sair da nossa casa, não queria que te sentisses perdida e usurpada… O meu filho libertou-me do peso de algumas decisões; assumiu-as e fez tudo o que podia: pediu-me que assinasse alguns papéis que o tornassem meu representante, para eu poder estar contigo sempre que possível. Visitamos alguns lares, não gostei de nada do que vi: desumanos, caríssimos, destituídos de carinho e dignidade. Não te queria num sítio assim…. Depois de uma busca incessante, e por sugestão da minha nora, fomos para Gaia. Segundo ela, não havia melhor do que aquilo. Pediram-nos tanto dinheiro…. Felizmente, fomos poupados e tínhamo-lo.

 

Disse ao meu filho que ia manter a nossa casa. Que me saberia bem ir lá com frequência, cuidar do jardim, cheirar as nossas coisas…. E que, se não te desses bem no lar, te trazia para casa novamente e arranjava apoio domiciliário. Mereces o melhor. Fizemos a mudança. Instalamo-nos no lar, nós e o inferno…. Não pudemos ficar juntos. Adormecemos e acordamos juntos durante mais de vinte anos, mas ali fomos impedidos de o fazer… Custou-me tanto e sei que a ti também… Tentei arduamente adaptar-me mas cada dia que passava era pior do que o anterior. Tu choravas angustiada, detestavas aquilo. Entrei em colapso….Tomei a decisão de voltar para casa. Afinal, ainda tínhamos dinheiro suficiente para eu poder cuidar de nós, com ajuda. Para te poder devolver a dignidade que merecias até ao fim da tua vida. Pedi ao meu filho os papéis das nossas contas bancárias, os documentos e tudo que ele havia guardado. Ele evitava atender o telefone, recusava-se a estar comigo. Ficou muito chateado quando lhe comuniquei a nossa decisão de sair do lar… Fui ao banco. Não temos um cêntimo…. A minha nora encarregou-se de deixar as contas a zero, “para ajudar os velhinhos” que nunca viram esse dinheiro… Fui a nossa casa, está vazia…. Segundo os vizinhos, no mesmo dia em que nos deixaram no lar, o meu filho, a sua mulher e as suas filhas, esvaziaram-nos a casa, levando tudo o que lhes interessou. Não temos nada, mulher, nada. Tantas vezes me avisaste. Tantas vezes me pediste que tivesse cuidado, que resguardasse o meu coração, porque o meu filho e a minha nora me iriam magoar sempre que eu deixasse…. Sabes o que me custa mais? Ter deixado que te magoassem a ti também.

 

Estive contigo ainda há pouco. Já não dizes nada, já mal te mexes. A mobilidade que ainda te resta de um braço, permite-te – tentar -  escrever, devagarinho… Disse-me o médico que vais perder o controlo completo do teu corpo, até ficares presa, absolutamente consciente, dentro desse corpo que não te obedece, até ao fim… Não fui capaz de te dizer que não tínhamos um cêntimo nem em que estado estava a nossa casa… não fui capaz de te dizer que sempre tiveste razão… que me amaste de uma forma pura e humana e eu retribuí, falhando contigo tremendamente… Dei-te um beijo e deixei-te a dormir. Andei desnorteado pelas ruas, dei por mim aqui, nesta ponte nova, mais uma que une Gaia ao Porto. Sinto-me um farrapo humano… Já nada me resta e não suporto a ideia de te perder também. Perdoa-me por não ter sido capaz de cuidar de ti como cuidaste de mim, até a saúde te faltar… Brevemente, estaremos juntos, num lugar onde te verei apenas sorrir e ser feliz. Sem dor, sem doença. Espero lá por ti, sou demasiado cobarde para ser o último a partir. Por isso agora, sucumbo. Vou mergulhar no Douro e deixar que a água me leve e lave todos os meus pecados…

 

Alexandra Vaz

 

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2.9.09

 


 


O abandono é consequência de um acto, o acto de abandonar.


Quem abandonou tomou uma decisão, reflectida, egoísta ou altruísta, é uma decisão que manifesta uma vontade e, como tal, estará preparado para as consequências do acto, ou não estando, revelar-se-á esta como uma má decisão. Se alguém abandona o emprego, o curso académico ou o lar, terá prevenido alternativas, ou não; em todo o caso, recairão sobre o próprio os efeitos da sua conduta, responsabilizando-o.


A mesma responsabilização não se pede ou exige a quem é abandonado. Este, impreparado porque se confronta com uma situação inesperada, e quase sempre indesejada, desenvolve outros sentimentos e comportamentos por forma a adaptar-se, resultado que nem sempre é conseguido. Neste caso, o abandono passa a ser causa de outros sentimentos, como a tristeza, o isolamento, a solidão, a falta de auto-estima e de amor próprio.


Normalmente, à dor de “se fui abandonado é porque desiludi, não estou à altura”, sobrepõem-se comportamentos doentios, depressivos. A vida de Florbela Espanca foi marcada por abandonos sucessivos e perdas dos quais resultou uma depressão e a concretização do suicídio à terceira tentativa. Por vezes a reacção é destrutiva, transfere-se para outros toda a raiva e frustração, impõem-se comportamentos agressivos e violentos, e inflige a si próprio uma destruição lenta; as dependências podem ser sintomas disso mesmo.





A reacção ao abandono, dos movimentos migratórios é algo bizarra. Os pais migrantes vivem com o sentimento de que abandonaram os filhos; “arrumam” este sentimento e vivem o dia-a-dia na convicção de que esta separação contribui para o bem-estar dos filhos e para lhes proporcionar um futuro melhor. Os filhos, sem a visão dos pais, sentem-se desprotegidos, desamparados. É no mês de férias que passam juntos, que tudo se compõe. Os pais compensam os filhos com exuberantes manifestações de afecto; os filhos fazem perante terceiros exibições narcisistas dos seus pais. Todos se esforçam por mostrar que são uma família normal; na prática, estão a armazenar reservas para mais uma ano de separação.





Cidália Carvalho


 

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21.12.08

 


 


A mim, o Natal traz-me uma mistura de sentimentos, sendo que alguns devem-se às minhas próprias experiências e vivências e outros devem-se ao que me vai sendo possível observar no meu entorno. E são estas últimas que me levam a escrever agora, um pouco.


 


Nesta época do ano andamos todos encantados da vida a tentar estourar o subsídio de Natal com aqueles de quem mais gostamos, na esperança que em troca de um presente recebamos um sorriso.


É um momento em que esquecemos tudo de mau que nos rodeia e o discurso de toda a gente é cheio de optimismo (pelo menos enquanto as luzes de Natal piscam no pinheiro).


 


No entanto, para algumas pessoas, o Natal não é uma época de troca de prendas, nem de luzes, nem de montras cheias e mesas fartas de doces e familiares. É uma época de dor, de solidão e de abandono.


Li há dias uma reportagem sobre os nossos idosos que, nesta época natalícia, são abandonados nos hospitais, pelas famílias, como se de um rafeiro sarnento se tratasse.


 


O que é que este tipo de atitudes diz de nós enquanto seres humanos e enquanto sociedade? Para onde nos dirigimos quando viramos as costas a quem, muitas vezes com sacrifício pessoal, deu tudo o que tinha para nos criar? Como é que conseguimos celebrar a consoada, sabendo que deixámos alguém para trás?


É este o espírito natalício e católico que queremos passar às próximas gerações?


Espero que não...


 


Espero que este ano todos tenhamos o melhor Natal possível e que merecemos, junto de quem Amamos!


 


Alexandre Teixeira


 

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