1.2.19

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Foto: People - StockSnap

 

Faz hoje vinte e quatro anos que o meu pai morreu. Não consigo passar este dia sem me lembrar deste facto, mesmo que o tempo avance e se preencha com tantas outras datas e memórias. Faz hoje anos que perdi alguém que me amou, que mo disse, que me fez sentir especial, ainda que por um curto espaço de tempo. Para quem nos conhece e acompanhou a nossa história de vida, esta minha afirmação poderá parecer insana. Em abono da verdade, não posso enaltecer as qualidades paternas ou conjugais do meu pai que, escravizado pelo álcool, quase nos destruiu. Durante muitos anos, a seguir a cenas dantescas, fugíamos e refugiávamo-nos em casa de algum parente (chegámos a mudar de país), mas regressávamos a casa para o infernal habitual, depois das lágrimas do meu pai e a promessa velada de que “agora ia ser tudo diferente”. Não foi um bom pai, não foi um bom marido. Quando a minha mãe teve coragem de o deixar definitivamente, passei três anos sem sequer lhe falar. Fugia dele quando ele aparecia na escola ou na rua, vivia com medo até da minha própria sombra. Aos 16 anos senti que tinha de o enfrentar e perceber o que sentia por ele, para além daquele terror tão absoluto. Sabia que não podia crescer naquele espaço, dentro de mim, de tanta raiva, em permanente estado de vigília, dominada pelo medo.

 

Um belo dia, comprei, com a ajuda de braços de um amigo, uma grade inteira de cerveja. Ajudou-me a carregá-la até à porta da casa do meu pai e fugiu antes que ele tivesse tempo de a abrir, depois de me dizer que eu devia ser maluca ou masoquista para o procurar. As minhas pernas tremiam, as mãos suavam, tinha vontade de fugir também, mas não arredei pé. Quando abriu a porta, ficou surpreso pela minha presença. Saudou-me com o sarcasmo que lhe conhecia e proferiu um disparate qualquer que ignorei. Apontei para a grade de cerveja (bebida de eleição do meu pai e que ele consumia em doses industriais, bem como os bagaços) e disse-lhe:

- Esta noite, eu e o pai, vamos beber isto tudo. Pode ser que eu hoje perceba como é que esta porcaria foi mais importante do que a mãe, eu e o meu irmão na sua vida.

Surpreso, deixou-me entrar. Enquanto caminhava para a sala, ainda com as pernas trémulas, pensava no quão difícil era estar ali, naquele cenário onde, durante mais de uma década, fomos espancados quase até à morte. Aquela casa trazia-me o terror de outrora, os gritos, o sangue, a violência física e psicológica que, para nós, foi a normalidade do quotidiano, durante demasiado tempo.

Nessa noite, estivemos sentados na varanda, bebemos, falámos. Pude, pela primeira vez, ver o meu pai com outros olhos. Descobri que, por baixo de tanta raiva, de tanta frustração, estava um homem assustado, frágil, vulnerável. Não falámos diretamente do passado, mas a dada altura, o meu pai perguntou-me se era possível perdoar coisas já idas, se eu era capaz de perdoar. Disse-lhe que não era Juíza, Deus ou qualquer outra entidade com tal poder, para criticar, julgar, absolver ou condenar. Disse-lhe que gostava dele, apesar de todos os pesares, que percebia agora que tinha o melhor dele em mim (o amor pelas palavras, pela leitura e pela escrita, o humor mordaz, a rapidez de pensamento) e que lamentava que a vida lhe tivesse, precocemente, ceifado o caminho. Perguntei quem o tinha magoado tanto para ele nos ferir com tanta violência. Chorou como um menino, mas não me respondeu… Não consegui abraçá-lo, não sabia como fazê-lo, mas permaneci ao seu lado, em silêncio, e partilhei as suas lágrimas.

 

Naquele momento, constatei que eu, a minha mãe e o meu irmão teríamos de viver com aquelas memórias aterradoras, sim, mas o meu pai tinha o pior dos castigos: viver com o que nos tinha feito, até ao último dos seus dias. Não podia imaginar nada mais triste do que ser quem ele era, nada podia ser mais punitivo do que carregar aquela mágoa: ser, simultaneamente, a sua maior vítima e o seu próprio carrasco. E, naquela varanda pequena, de madrugada, com aquele homem ao meu lado, subjugado pelo peso da culpa, do remorso e da vergonha, soube que nem o meu pai conseguiria odiar.

Essa noite salvou-nos. Nunca mais pude apreciar uma cerveja, é um facto, mas o balanço final era claramente positivo. Durante os (quase) quatro anos seguintes, apesar do alcoolismo crónico, tive o pai que nunca havia tido: doce, carinhoso, orgulhoso de mim. Nunca mais foi violento, física ou psicologicamente. No único dia em que ousou levantar-me a voz, berrei mais alto do que ele e ele calou-se. Disse-lhe:

- Afinal o pai é um covarde como os outros. Só ostraciza quem treme de medo. Pois eu não tenho medo, já não. Acabou!

Olho no olho. Firmeza na minha voz. A primeira e última vez que precisei de o fazer.

Desse dia em diante, substituímos os gritos por gargalhadas e os anos passaram demasiado rápido. Na verdade, não podemos parar o tempo ou dizer-lhe que é urgente viver devagar, que precisamos de tempo para sentir devidamente, para absorver e digerir as páginas da vida e as mazelas debaixo da pele. Gostava de ter crescido mais um pouco, mais depressa, de poder vir a ser adulta a sério para o conseguir ajudar. Na minha cabeça, assim que tivesse um emprego “como devia ser”, estabilidade e maturidade, iria ajudá-lo a deixar o álcool. Iria ser capaz de o amar o suficiente para que ele não fosse atormentado pelos seus demónios; imaginá-lo torturado pelos remorsos não era uma imagem que me agradasse. Durante esses anos, fui feliz ao lado do meu pai. Vivi com ele momentos muito bons que, aos poucos, foram varrendo as memórias tempestuosas para um canto esquecido em mim e dando lugar apenas ao amor, ao carinho, ao respeito que sempre havia esperado. O meu pai esteve presente, sobretudo, emocionalmente, em momentos marcantes e decisivos da minha entrada na vida adulta. Sou muito grata por este tempo que nos resgatou e que me permite, ainda hoje, lembrá-lo sem dor e com verdadeira saudade.

 

No dia em que o meu pai faleceu, corri para a sua casa, para lhe dar a notícia da neta que vinha a caminho. Queria tanto que ele conhecesse a bebé que trazia dentro de mim, talvez esta menina o ajudasse a escrever uma nova história, uma sem violência, dor e culpa. Uma que lhe permitisse uma velhice feliz e sanada. Afinal, os seus 52 anos faziam-me crer que tínhamos tempo. Estava tão feliz por saber que seria avô em breve! Faltavam quatro meses para a minha filha nascer quando sepultei o meu pai. Faltava tempo para todos os meus planos, faltava o meu pai na minha vida e, pela primeira vez, senti-me verdadeiramente só. Órfã de amor e de pertença. Tudo me havia sido tomado precocemente. Na urgência dos dias, questionava-me se seria essa a cadência do meu percurso vital. Estava mais perdida do que um caramelo esquecido no bolso de um casaco, na mudança de estação. Assim que me foi possível, coloquei aqueles quatro anos no regaço, para que jamais me escapassem (tudo o resto deixei ir no caixão do meu pai), abracei a dor e a incompreensão e aceitei a inevitabilidade da existência. Um dia atrás do outro.

 

Vinte e quatro anos depois, não sou vítima de coisa nenhuma, continuo profundamente grata. Estou em paz com este passado e deixo que a saudade mais apertada, que hoje sinto, me lembre o bom que pude viver – é aqui que me alicerço, nos dias frágeis, em que a memória me trai… Mas hoje, só hoje, gostava de poder olhar o meu pai nos olhos, apresentar-lhe os três netos lindos que ele tem e, estou certa, vê-lo sorrir, inchado de orgulho e de alegria. Gostava de sentir as suas mãos nas minhas, dizer-lhe que o amo, que sou feliz e dar-lhe o abraço que lhe faltou quando ele era pequenino. Afinal, sei-o agora, precisou de mais amor do que nós.

 

Alexandra Vaz

 

Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 07:30  Comentar

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