Foto: Baby - Joshua Byrne
Que belo dia de verão. Não tenho vontade de fazer nada, quero ficar aqui, debaixo do sol, o dia inteiro. Quero esquecer a vida amarga que digo ter escolhido, quero fugir daquela criatura que se pavoneia no meu estado civil. Sei como cheguei aqui. Na verdade, soube cada passo que dei antes de o dar, pesei prós e contras e nunca me atirei de cabeça a coisa nenhuma. Sei-me sob o escrutínio dos outros e nunca, nunca, me coloquei à mercê deles. E agora, que ironia, por causa desta mulherzinha, arrasto-me pela lama da vulgaridade, sem sequer ter escolhido ser parte deste enredo. Dá-me muito mais trabalho limpar o que ela conspurca do que a azáfama da minha, muito pública, vida profissional. E, no regresso a casa, o vazio que se instala dentro de mim, a solidão de uma gaiola dourada, fria e luxuosa, pesa mais do que qualquer outra coisa. Nunca estive tão só quanto estou com ela, esta pessoa infeliz mas determinada em ficar, cansada, militantemente queixosa, persistente nesta derrota que aceita como um mal menor. Talvez se convença disso, não sei mas, a mim, já não me restam ilusões. As que insisti em manter, foram-me arrancadas da pele no dia em que a soube nos braços de outro tipo. Não me lembro de a ter enganado, de a ter convencido a ter o nosso filho, tão pouco me lembro de a ter obrigado a ficar comigo, por essa ou por qualquer outra razão. Por que raio me fez isto? Nos fez isto? Por que não partiu, simplesmente, em busca das migalhas que, afinal, a preenchem? Por que me obrigou a viver aquilo que nunca escolhi para mim? E, como foi ela pensar que conseguiria esconder algo assim, quando toda a gente me conhece? Quebrou-se o encanto, aquela centelha de magia que me fazia pensar que ela era diferente de todas aquelas que, durante décadas, evitei com mestria e sensatez. Restava em mim alguma ingenuidade que era preciso eliminar, mostrou-me a vida, impiedosa.
Apesar de nunca ter casado, desejei secretamente alguém que pudesse partilhar a minha vida, talvez amar-me o suficiente para me permitir viver feliz e tranquilo. Porém, nos dias de maior vulnerabilidade, o meu medo da solidão foi muitas vezes apaziguado pelo relato sórdido dos colegas com vidas duplas: pior do que estar só seria viver como eles, pensava eu, sem descanso, sem verdade, naquele torpor que não parecia levá-los a lado nenhum. Quanto mais relatavam, quanto mais vazios se mostravam, mais sentido me fazia estar comigo próprio e esperar a pessoa, a tal pessoa que estaria a anos-luz daquelas almas perdidas. Fugi daquelas vidas como o diabo da cruz, não queria estar ali e ser alvo de chacota, não queria jamais sentir-me traído, perdido, magoado. Nada me parecia mais terrível. Durante muitos anos, achei que o meu sexto sentido nunca me enganaria. Prestei atenção a tudo o que ouvi, aprendi a ler nas entrelinhas. Conseguia cheirar um “golpe do baú” a milhas de distância, senti-me seguro e confiante.
Conheci-a depois do meu pai ter partido, quando a vida se fragmentava perante os meus olhos. Gostei da sua ternura, da voz doce, das boas maneiras, da delicadeza do seu sorriso. Naquele momento de dor, havia chegado a serenidade, o amor, a partilha. Abracei-a, sem defesas, fui criança de novo, brinquei com ela, deixei-me fascinar e, sem me dar conta, ela tomou o seu lugar na minha vida. Em breve, seríamos três. Foste enganado, arriscaram os “amigos”… Não, não fui. Seria um crápula se o dissesse. Planeamos este filho juntos. Talvez a vida tivesse levado o meu pai e, agora, me trouxesse um filho. Uma vida por outra vida, quis eu acreditar. Construí a minha razão e embarquei nesta aventura com ela, de mãos dadas e sem plano bê. Ainda antes da nossa curta lua-de-mel, pedi-lhe que, se as coisas mudassem dentro dela, me respeitasse o suficiente para não me mentir. Disse-lhe, olhos nos olhos e de coração aberto que, se alguma vez se sentisse sufocada, presa numa vida sem sentido que podia, a qualquer momento, sair dela. Que nunca a faria ficar contra a sua vontade, se esta não fosse plena. Doravante, também ela passaria a estar na mira de toda a gente, como minha mulher, como mãe do nosso filho, e que o peso disso podia tornar-se insustentável. Só pedi honestidade, lealdade e integridade.
O sorriso e a ternura desapareceram muito tempo antes do seu envolvimento com um colega meu. A intimidade, essa, havia desaparecido, ainda na gravidez e mantinha-se neste segundo ano do nosso filho porque “as coisas demoram o seu tempo”, porque “o Gonçalo tem noites irregulares e precisa da mãe” e uma série de outras razões que me fizeram esquecer as curvas do seu corpo, outrora, aninhado no meu. Culpei as hormonas, a falta de descanso, a recente maternidade, dei-lhe todo o espaço do mundo. Não vi a amargura a instalar-se, não percebi a tremenda inconformidade que habitava nela e que agora, sem resguardo, estava prestes a explodir. Pensei estar a dar-lhe liberdade, mas deixei-a simplesmente à deriva. Sem entorno nem retorno. Soube o que ela tinha feito, no dia em que se encontraram frente a frente pela primeira vez. Não queria voltar a casa nesse dia. Não queria sentar-me com ela, olhá-la nos olhos e ter de lho dizer. Não queria. Parte de mim gostava genuinamente de a poder fazer desaparecer, com um simples estalar dos meus dedos. Mas voltei a casa, sentei-me com ela e disse-lho, sem gaguejar, com a outra parte de mim: a que lembrava o Gonçalo e o facto de ela ser, eternamente, sua mãe. Queria um fim para este pesadelo.
Não lhe disse, todavia, que jamais voltaria a confiar nela. Não lhe disse que, naquele dia, me repugnava olhar para ela e que a sua mera presença me incomodava. Não fui capaz. Disse-lhe que se fosse embora. Que não aceitava viver exposto, defraudado. Que a apoiaria sempre, que não faltaria com nada ao nosso filho que tanto amo. Não lhe disse que queria, mais do que tudo, que ela desaparecesse, que saísse da minha vida e me deixasse recuperar a tranquilidade da minha solidão. Engoli em seco, disse-lhe que não teria aquela conversa uma segunda vez e que haveria consequências desagradáveis se ela repetisse a graça. Contudo, se ela partisse naquele momento, assegurei-lhe, não haveria lugar a azedume ou a “lavagem de roupa suja”. Achei-a aliviada enquanto eu falava, achei-a prestes a aceitar a minha proposta e a agarrar a liberdade com que a presenteava. Mas ela não foi embora. Suplicou, chorou, deixou-me sem resposta. Pediu para ficar, disse que tinha cometido um erro e que não queria deixar de ser minha mulher – perguntei-me se alguma vez o tinha sido. No meio das lágrimas abundantes, disse que queria criar o nosso filho comigo, como uma família. Falou tanto, disse coisas sem jeito, entre lágrimas e gritos histéricos; falou sem parar e eu só queria que ela se calasse. Quando consegui balbuciar algumas palavras, não fui capaz de lhe dizer que não a queria comigo. Assim que me sentiu hesitante, ela aceitou, sem questionar, as condições que cobardemente lhe havia oferecido e varreu o lixo para debaixo do tapete. Estalou os dedos ainda antes de eu conseguir tirar as mãos dos bolsos. Estava feito.
Decidiu permanecer comigo, nesta vida que lhe parece mais aceitável do que ter de a enfrentar sozinha, mas não houve magia ou mudança. Simplesmente deixou de camuflar o que sente, toda ela irradia inconformidade e apatia. Quanto mais se acomoda, menos ternura lhe resta. E aqui estou eu, nem sei eu bem porquê, preso a tudo o que não fui capaz de lhe dizer, refém daquilo que finjo aceitar. Hoje ela saiu para levar o Gonçalo ao colégio e ir ao ginásio. Vê-los sair encheu-me de alegria. Está um dia maravilhoso, a casa permanece em silêncio, o ar é leve, dentro e fora de mim. Só por algumas horas, quero desligar o telemóvel, o cérebro e o coração e dormir, sem preocupações e angustia. Talvez acorde deste pesadelo a que chamo vida e tudo esteja, afinal, no seu devido lugar.
Alexandra Vaz