24.4.15

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Hoje faço anos e não tenho nada para comemorar. Ando lixado, não durmo nada, sinto coisas estranhas e nem idade para isso tenho. O Zé ligou-me para me dar os parabéns, nesta "data mítica", e me persuadir a sair. Envelhecer, segundo ele, é um privilégio de poucos. Quando a minha falta de entusiasmo, finalmente, o desmotivou, ensaiou a voz mais doce que lhe foi possível e disparou, com a delicadeza de uma motosserra: “… bem, amigo, que queres que te diga… é bom, vais ver. Na verdade não podes evitar. A menos que morras, pois podes morrer entretanto, sim… Em todo o caso, se não acontecer – porra, Américo, que não te desejo a morte - para teres uma vida longa vais ter de envelhecer, meu caro amigo, não tens como evitar… e agora, olha que lindo, vais entrar na ternura dos quarenta. Tu anima-te! Tanta gente no mundo, Américo, que nem chega à tua idade e morre jovem. Ah pois!” Tanta frase sem sentido, tanto perdigoto acrobático, para me dar esta machadada. Mas que raio de ternura pensa ele que me traz a idade quando, até agora, não foi sequer meiga, quanto mais ternurenta ou colorida? E este discurso, quando não me apetece enfrentar o facto de que o chão me parece cada vez mais perto, só me faz mal. Não quero pensar nisto muito tempo, mas entro numa espiral que não consigo travar: durmo cada vez menos, como quando tenho tempo, fumo mais do que devo, vejo a morte em todo o lado, sinto mil maleitas e acontecem todo o género de merdas. Dou por mim acagaçado, num medo estranho de tanta coisa ao mesmo tempo mas, claro, ceguinho à minha quota-parte de responsabilidade em tudo isto. E culpo a vida, o carma, o excesso de trabalho, o chocolate, as azeitonas e as histórias infelizes. Porque é mais fácil. Porque é mais light.

Antigamente – muito antigamente mesmo – era mil vezes pior, não ligava puto. Eu queria lá saber se era preciso “comer a horas decentes e de forma adequada”, se era preciso “descansar e dormir”, privilegiando o “soninho da noite”, por mais que a minha mãe insistisse nisso. Na verdade, comer umas sandes, debicar umas bombas calóricas, dormir de dia (de pé, no autocarro, na aula, em gestos graciosos que aliavam a perícia de braço à capacidade de não tombar; no sofá, enquanto a mãe berrava da cozinha que só ter homens em casa era o mesmo que “ter estátuas que não servem para nada mas ainda exigem serviços gerais”), chegava perfeitamente. Não havia olheiras, cabeça pesada, consequências visíveis, a sensação de atropelamento em slow motion. A morte era uma coisa de velhinhos ou de gente muito doente, eu vendia saúde. Eu desafiava todas as leis do universo, pensava, nas minhas transgressões constantes. Nada me pegava, nem uma constipação.

Depois cresci. Um dia eu já sabia tudo o que tinha feito de errado. Tudo era claro como água. Eu sabia tudo acerca de tudo, em todo o momento. Tudo. Sem falsas modéstias. Revivi alguns momentos, muito mais tarde, em golfadas violentas, na vontade e na memória. Atormentei-me, durante muito tempo, por não ser capaz de parar ciclos dentro de mim. Por saber exatamente aquilo que fazia de errado e, ainda assim, andar em looping constante naquele filme. Rapidamente esgotei os argumentos e os recursos. Cansei-me de sonhar sem chão, de sorrir sem retorno, de acreditar que todos eram bons, ainda que me magoassem. Cansei-me da minha ingenuidade, da minha outra face sempre disponível, da estupidez que me impedia de me defender. Esgotei a esperança no dia seguinte, nos outros e nas circunstâncias. Tornei-me um crítico feroz de escolhas e almas, senti-me genuinamente senhor da razão e da moralidade. Ser um parvo acutilante foi o meu cartão-de-visita durante demasiado tempo. O dia em que, pela primeira vez, senti o mal que tinha feito a outro ser humano, com todas as minhas críticas insensatas, doeu profundamente. Percebi a rejeição dos outros, o seu escárnio, a força da maledicência. Lembrei o que havia sentido também. Doeu tanto que cheguei a ter saudades dos tempos em que dormia leve como um passarinho, com a alma isenta de responsabilidade. Em que coisa nenhuma beliscava a minha consciência.

Já não sou capaz. A minha consciência consegue agora atormentar-me visceralmente. Sucumbo, o meu corpo colapsa. Fico impossível de aturar – eu próprio, não me aturo - e sei, sem confessar a terceiros, que me arruíno neste fandango. Que sou o maior responsável por tudo isto. Quero muito saber quem sou, debaixo do medo e da culpa; quero ouvir a minha verdadeira voz mas sinto-me tão nu nessa escuta. Foi-se o tempo da imortalidade. O passado, sem legendas adulteradas, pode ser algo aterrador. Faz doer coisas que nem sabia existirem em mim. Sinto-me um destroço humano, uma criatura nascida já remendada que foi, estupidamente, resistindo a todas as vozes que sussurravam que não valia a pena. Não sei nada de nada. Desaprendo para poder aprender-me.

Sem que eu tivesse tempo de pestanejar, perdi algumas das pessoas mais importantes da minha existência e muita coisa mudou. A vida mostrou-me que a morte, afinal, não é só coisa de velhinhos e doentes. O tempo parece agora cada vez mais curto, sobretudo para carregar culpas que nada acrescentam mas que permanecem, nos sentidos, uma eternidade. Tenho tanto medo de envelhecer como de morrer. Viver entre estes dois mundos tira-me o ar, mas é a vida. Preciso de aprender a viver com tudo isto. A alternativa pesa-me como uma albarda e já não me apetece carregar esse adorno. A minha cegueira converteu-se numa consciência pesada que, aos poucos, se vai tornando mais leve. Aceito-a. Faz parte de mim. Faz de mim quem sou hoje. Mas dêem-me tempo, pela saudinha de qualquer coisa que vos apele à sensibilidade; não me venham com ternuras da idade e tal e tal. Deixem-me absorver a coisa toda antes de me lembrarem o que ainda não aceitei verdadeiramente. Estou a conhecer o tipo no espelho. Sem camuflagem, tem dias em que me mete medo. Hoje é um deles.

 

Alexandra Vaz

 

Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 08:00  Comentar

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