10.11.14

 

A D. Clara tinha quase 90 anos. Tinha uma família grande, alguns filhos, muitos netos, mas vivia sozinha. Tinha o seu quintal, entretinha-se a tomar conta de alguns legumes que cultivava, de algumas flores que plantava e de alguns gatos que por lá passavam em jeito de visita. Os filhos e os netos iam muitas vezes lá a casa falar com ela, ver como estava, fazer-lhe companhia, saber dela. Sempre que lá iam a D. Clara fazia aquele maravilhoso bolo de maçã que toda a gente na família adorava e que era sinónimo de festa e de convívio – não havia reunião de família em que não estivesse aquele bolo na mesa e aquele cheirinho pela casa fora e lá fora na rua!

Ultimamente, as visitas à D. Clara eram mais raras, menos frequentes. Vivia longe, era caro ir até lá, há que reduzir despesas e cortar nos gastos. Os filhos e os netos continuavam a fazer-lhe visitas, mas muito mais espaçadas no tempo.

Entretanto, a D. Clara começou a sentir-se cansada, sem ânimo, triste e de certa forma angustiada. Não sabia bem porquê. Estaria doente? Seria da idade? Seria dos anos que começam a pesar? Seria saudades dos filhos e dos netos? Seria do tempo? Todas estas questões, foi colocá-las a um médico que conversou com ela, que a examinou e que no final lhe receitou alguns medicamentos que a fariam sentir-se melhor.

A D. Clara veio com a receita na mão, pelo caminho fora. Nunca tinha tomado remédios na vida dela, nunca precisara. Será que o remédio era render-se a eles? Foi até à farmácia, mas a receita era extensa, eram tantos medicamentos e tão caros que só comprou metade! “Não preciso de tanta coisa, isto há de passar!”. Levou apenas dois ou três medicamentos consigo pelo caminho para casa. Seguiu a receita do médico e tomou-os, mas não parecia melhorar. Continuava cansada, desanimada, triste e agora com muito sono! Já nem lhe apetecia ir ao quintal, só queria ficar na cama.

Os filhos e os netos continuavam a visitá-la, mas já não era a mesma coisa. Já não viam a casa de portas abertas e de quintal à mostra. Já não conseguiam que as conversas fossem longas e a presença alegre. E já não havia o bolo, o delicioso bolo de maçã que perfumava a casa e aliciava a rua. Festa já não era sinónimo daquela casa, convívio já não era sinónimo daqueles dias de visita.

Até que para uma das netas a solução surgiu clara como água! Reuniu alguns primos e foram visitar a avó de surpresa. Chegaram, deram-lhe um beijinho algumas palavras e foram para a cozinha. Ligaram o forno, prepararam a mesa e puseram cá fora as panelas, as formas, o rolo da massa, a batedeira, a varinha mágica, enfim tudo o que seria necessário. Falavam e riam, distribuindo funções e tarefas. Logo depois apareceram os tios com os ingredientes: um trazia a farinha, o outro trazia os ovos, o outro o açúcar e as maçãs. Puseram tudo em cima da mesa e começaram a descascar, a juntar, a bater, a espalhar. Tudo numa grande algazarra porque tanta gente numa cozinha só podia dar nisso – muita conversa, barulho, gargalhadas, confusão… Foi quando a D. Clara apareceu à porta, a ver o que se passava. Que barulheira era aquela? E foi quando viu a cozinha cheia, a mesa toda suja de farinha, de cascas de ovos e de maçã e toda a gente a conversar, a dar palpites, a brincar. “Para o bolo ficar bom, as maçãs têm de ficar acamadas na parte de cima. Assim.” e começou a mostrar como se fazia. Abriram caminho para deixá-la chegar à mesa e com toda a gente à sua volta a ver como era a D. Clara foi colocando as maçãs enroscadas umas nas outras. “Agora experimentem vocês” e cada um foi pondo um pedaço de maçã juntinho a outro até cobrir a massa que estava por baixo. Puseram a forma no forno e todos se sentaram à volta da mesa a conversar e a contar trivialidades ou histórias enquanto esperavam. Um cheirinho começou a espalhar-se pela casa e pouco depois saiu para a rua.

Serviram o bolo com chá, sumos e café. Todos à mesa a saborear aquele bolo de família.

A casa estava cheia a julgar pelo barulho e pelos sons, o bolo continuava delicioso a julgar pelas exclamações e elogios e a D. Clara estava muito melhor a julgar pelo sorriso enroscado na cara e pelo calor que sentiu em sua casa e que há muito não aparecia!    

 

Patrícia Leitão

 

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