Girou a cabeça num ímpeto de quem se desprende de um afeto que despreza. Cintilou a mecha de cabelo loiro, que esvoaçava, confundindo a luz do sol.
- Que me importa? – questionou ela.
- Não te importa? – perguntou face à sua indiferença.
- Ninguém se importa – retorquiu secamente.
Guardava a secura das suas palavras. Não esperava nada de ninguém.
Tinha vivido mais ou menos assim toda a vida que lembrava. Foragida das emoções. Pelo menos daquelas que faziam chorar. Já aquelas que criavam adrenalina, essas, ela buscava intensamente, como quem corre para a fonte quando a sede importuna. E nessas emoções, sentia-se pertencida. Parte. Real. Viva.
Não conhecera o pai, nem de retrato. Só a mãe, que pouco via. Trabalhava até tarde. Não tinha tempo para ela. Só para pôr pão na mesa. Menina crescida, sempre fora um pouco livre. Mas, sua face de anjo, andava muito longe de menina bem comportada.
Desviava-se nas presenças de quem lhe fazia companhia, não das melhores, claro está! Mas, companhia. Não era tão só, assim. Deambulava e alinhava nos esquemas dos mais velhos.
A primeira vez que roubara, sentira um aperto no peito. Sabia que não era certo. Mas fez. E teve direito a festa e tudo. Sentiu-se parte. Aquilo devia ser o mais perto de família. Mentiu para a mãe. E convenceu-se disso. Que não fazia mal. Não era nada de especial.
Quando estava em grupo, tudo era maior. Ela era maior. A maior! Sentia aquela rajada de adrenalina e acreditava que estava viva. Chegava a casa e sentia-se menina de novo. Desamparada. Chorava no silêncio. A mãe dormia, de tão cansada. Havia um abismo entre ambas. Coisas que a vida arrasta. A mãe não tivera vida fácil também, enquanto menina. Todavia, esforçava-se muito para que a filha tivesse futuro melhor. Mas, nesse processo, não havia muito espaço para partilha. A vida era demasiado dura. E era nessa ausência, que a menina sua, se desviava na presença de outros. Com outros. Desconhecidos, tão familiares à menina. Nessa ausência, a menina se convencia que não importava, a não ser aos olhos do seu grupo. Dos seus amigos.
Continuava a faltar, constantemente, às aulas. A mãe, sem tempo para reuniões, já a ameaçara de colégio interno em resposta à sua ingratidão. Retorquia que não gostava da escola. Fugiria para bem longe.
Havia apenas uma aula de que gostava. Não era bem a aula. Era a professora. Era diferente. Não sabia explicar. Talvez fosse a única que nunca a expulsara da sala.
De vez em quando, no recinto da escola, sentia-se observada.
Nesse dia, a professora preferida aproximou-se. Falou com ela um pouco sobre nada. E depois, questionou sua conduta escolar. A razão das faltas. As companhias. Não como se criticasse, mas como se quisesse mesmo saber. Saber dela. Não das coisas que fazia. Estremeceu por dentro. Sentia-se estranha. Quando a professora perguntou sobre tudo isso, ela respondeu: que me importa? A professora limitou-se a devolver a pergunta. Ela, aí, desabafou: ninguém se importa. Mas, em vez do silêncio habitual, ela ouviu, pela primeira vez, numa voz doce: eu importo-me.
Cecília Pinto