Foto: Dog - Petra
Acordei virada do avesso: pronto, já percebi porque dormi mal, com as costuras do pijama a magoarem-me a pele de princesa(-faz-de-conta). A nesga da manhã que eu vejo da minha cama rasteira, hoje cinzenta e carrancuda, abriu-se num risinho sarcástico de sol – “quem te manda ir para a cama tarde e a más horas, já sem saber se é sono ou desleixo, essa tua mania de não virares o pijama do direito quando o vestes?”.
A nesga da manhã, o ronronar do dia, a vida que é tarde, o desalento que é sempre. E o aperto no peito, que não quero chamar angústia. A entrega. A entrega, essa companheira maldita, que me reduz à paralisia do corpo e me seduz com o voo da alma.
NÃO! – repito-me, enquanto o motor do universo lá fora tenta adormecer-me de novo, como que esmagando-me, como que tolhendo-me, como que aliciando-me com mais um minuto, uma hora, uma manhã, um dia, uma eternidade. Que eu sei, eu sei, são só ilusões que tomo com o copo de água que não bebo, ao acordar.
O meu bichinho de estimação remexe-se algures, pelo quarto, talvez não-incomodado com as não-costuras da sua cama rasteira. Não-costuras. Que sorte a dele, não viver condicionado por costuras e pijamas, e asfixiado por minutos, horas, manhãs, tardes, dias – eternidades.
Que sorte a tua, Kookie, por viveres aprisionado num espaço confortável e seguro, e numa vidinha de pequenas exigências: uma festinha de vez em quando, um olhar cúmplice quando te entendo, um passeio na erva molhada, uma corrida sem trela no hall do prédio, e os poemas que escreves no ar, com a tua cauda felpuda e sempre inspirada.
Vens até à minha cabeceira buscar o teu primeiro mimo, reclamando-o meigamente com a tua patinha-de-lã quase carícia, e tentas alcançar-me, com o narizinho ávido de cheiros, de respostas, de ar, principalmente do que me cerca. E entregas-te, no reconsolo simples da minha mão displicente e lenta. Encostas a cabecita na beirinha da minha cama, contentando-te com o meu toque leve e o meu olhar fundo e a tua expressão é mais que gratidão, é mais que plenitude, é mais que confiança, é quase Amor. Doce – fecho também os meus olhos – “como é doce essa segurança de te ter: aveludado e morno, atento e disponível, feliz e sem cobranças.”.
De repente, uma verdade de fundo magoa-me as pálpebras e obriga-me a abrir os olhos, como se uma força física me estivesse a apertar, em círculo de poder esmigalhante e, ao mesmo tempo, reconstituinte e reconstrutor:
“E se eu NÃO te tivesse, meu companheirinho de pelo demasiado, e carinho nunca em excesso?”.
“E se eu NÃO tivesse um pijama, de costuras tão avessas e um aconchego nunca agradecido?”.
“E se eu NÃO tivesse uma manhã para me acordar, birrenta e cinzenta, mas tão garantidamente atestada pelo ronronar da vida lá fora?”.
“E se eu NÃO sentisse esta angústia que é desalento, mas tão nítida e humanamente aberta aos estímulos, às sensações, à voz interior que me diz: ‘levanta-te!’?
‘E se tu NÃO pudesses...?’
‘E se tu NÃO fosses...?’
‘E se eu NÃO...?’
Olho de novo o meu cãozinho, ainda ali, amparando-me a raiz de uma pequena força, algures nas profundezas do meu ânimo. E vejo-A, nitidamente, nos olhos dele – a ESPERANÇA não é verde, não é palavra, não é lato conceito – neste momento, é apenas uma luzinha de cor indefinida, bailando trémula nos olhos do meu animalzinho de estimação.
Sorrio, quase sem querer, embrulho-me em mim mesma, num gesto intuitivo de reconforto, puxo o Kookie para cima da cama, e ficamos os dois, saboreando a proximidade dócil da ternura e do amor incondicional – a Vida é um colo. Um castigo, às vezes, mas sempre MÃE.
E permite-nos sempre a Esperança, sim - que se lixe o pelo nos lençóis!
Teresa Teixeira