Viajava sempre de comboio. Todos os dias, à mesma hora matutina, sempre do lado da janela. Era o meio de transporte que a levava para o trabalho. Durante a cerca de meia hora na carruagem da locomotiva, aproveitava para viver a sua vida imaginária. Ou então, a dos outros. Observava as pessoas que a rodeavam na carruagem, imaginando-lhes a história, tentando na sua mente descobrir-lhes propósitos de vida, anseios, sonhos, o que as movia. Era assim que se distraía até à paragem que a esperava todos os dias.
No início, não entrava sempre na mesma carruagem. Ia variando, para ver outros rostos, imaginar outras histórias, conhecer novos desconhecidos. Numa dessas vezes houve alguém que lhe chamou particularmente a atenção. A partir daí começou a entrar sempre na última carruagem e adquiriu o hábito de muitos, que é sentar-se sempre no mesmo lugar. Um lugar… privilegiado. Criou uma rotina que lhe trouxe algo novo, ou será que foi a novidade que lhe incutiu a rotina daquele banco sempre à sua espera? Seja como for…
Em todas as viagens da manhã, as reais e as imaginadas, lá o encontrava. Não, não! Isto não é a história de um amor/paixão platónica! Ele entrava sempre três, quatro paragens à frente da dela. Sempre que o comboio se aproximava lá estava ele, no sítio do costume, quase como se tivesse uma cruz a marcar o seu lugar. E a rotina repetia-se a cada manhã: guardava, meticulosamente e com a mais perfeita minúcia, o trompete na mala. Sempre os mesmos gestos… Gestos e uma figura que a fascinavam. Muitas vezes, quando o comboio se aproximava daquela paragem, ela ouvia as últimas soadas saídas do trompete, que invadiam a aldeia. Quase como que se aquele homem fosse o guardião daquela terra e o seu propósito fosse despertar do sono todas as pessoas que lá viviam, com o som do seu trompete. Como se essa fosse a marca de um novo dia. De seguida, cuidadosamente, limpava e guardava o instrumento. E ela via tudo isto da janela do lugar que passou a ser o seu.
Quando ele entrava no comboio, ela dava logo pela sua presença. Passava sempre ao seu lado, sentava-se sempre no mesmo lugar: à janela, como ela, mas do outro lado do corredor e de frente para que ela lhe pudesse ver o rosto. Era alto, robusto, devia estar na casa dos 40, talvez um pouco mais, olhos claros - nunca percebeu se azuis ou verdes - e, como o frio já apertava, usava sempre um gorro. Não era português, talvez fosse russo ou oriundo de algum país de leste. Parecia afável e simpático e trocava sempre algumas palavras com o revisor. Imaginava ela que já os conhecesse a todos.
Tinha uma postura carismática, diferente, pensava, sentindo que ele sentia que este era o país onde realmente estava em casa tal o à vontade com que se movia. Uma aura que não sabe caraterizar pairava junto a ele, aguçando-lhe a curiosidade sobre aquele homem e a sua história. Nunca chegou à fala com ele, mas adivinhou-lhe a história tantas vezes quantas aquelas em que o viu. Imaginava-lhe a vida, os sonhos, a chegada a Portugal, o destino da viagem e o que fazia quando lá chegava.
Sonhava ela que o destino dele era o Porto, sem conseguir perceber, ao fim de algum tempo, se isso era fruto da sua imaginação ou de algo que tenha ouvido das conversas que ele tinha com o revisor. Imaginava-o músico de rua ou professor numa escola de música conceituada. Ou ambas! Não era alguém que ligasse a aparências, convenções ou ideias pré-concebidas. Mas, sem dúvida, que era sábio, uma sabedoria que a deslumbrava. Pensava que, enquanto passeava pelas ruas portuenses, se iria cruzar com ele, atraída e chamada pelo som da sua música.
A sua figura fascinava-a, sem saber bem o porquê. Nunca lhe soube nada, senão as histórias que inventava na sua mente. Achava que nunca foi ter com ele para o conhecer, porque assim a sua história podia caminhar em direção a todas as possibilidades. A admiração por aquele ser não tinha limites. E era disso que se tratava nesta experiência, pensou: uma admiração profunda por alguém que não conhecia verdadeiramente, mas que exercia em si tal poder que realidade e imaginação se confundiam, trazendo-lhe, por momentos, algo dessa pessoa que lhe enchia alma e coração. E era também incrivelmente fascinante, acreditava, o poder das pessoas… sobre as outras pessoas, mesmo aquelas que são desconhecidas. Transmitiam-lhe algo, despertavam-lhe a curiosidade, traziam novidade à sua rotina.
E a rotina de um, o músico, e em consequência a rotina do outro, a menina, fizeram com que ambos, desconhecidos, se encontrassem num lugar que se chama imaginação.
Um dia, a menina ainda conhecerá a verdadeira história daquele músico…
Sandra Sousa