28.3.18

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Foto: Persons - Free-Photos

 

Sentia-me quase 100% feliz com a minha vida, não podia realmente queixar-me. Tinha sido adotada muito cedo, não me lembrava tão-pouco dos meus pais biológicos. A família que me adotou, para mim… são os meus verdadeiros pais. Não os vejo de outra forma. Deram-me a melhor educação que podiam, transmitiram-me valores e nunca me faltou amor e carinho.

Tornaram-me na pessoa que sou hoje. Acabei nova os estudos, pois além de ter entrado cedo para a escola nunca perdi nenhum ano. Sempre fui empenhada e dedicada nos estudos e fiz parte dos quadros de honra da escola. Os meus pais inscreviam-me em algumas atividades extracurriculares para me ajudar a socializar mais com as outras crianças, talvez também para me esquecer de que fora adotada; acho que eles sempre tiveram uma panóplia de receios no que toca a esse assunto. Penso que sempre houve uma voz pequenina no meu subconsciente que me questionava sobre esse assunto. Mas os anos iam passando e coisas novas iam sucedendo na minha vida, o que me fizera esquecer um pouco, ou colocar de parte algumas das minhas questões.

 

Foi quando terminei os estudos, que algo em mim despertou, uma curiosidade de saber quem eram os meus pais biológicos. Não só quem eram, como queria entender o motivo que os levou a desistirem de mim. Não que eu não tivesse sido amada, não que tivesse falta de algo. Mas porque sentia que não me conhecia na totalidade e precisava. Precisava de saber o porquê de me terem abandonado em pequena. Os meus pais adotivos, eles sabiam, notava no olhar deles por vezes, como se estivessem à espera do momento em que eu lhes colocasse a questão: “Vocês sabem quem eles são? Gostava de os conhecer”. Acho que sim, que temiam esse dia; e esse dia tinha chegado. Coloquei-lhes aquelas questões. Eles não levaram a mal, mas notei uma certa apreensão nos seus rostos. Não foram rudes, nem egoístas, nem esperava outra coisa deles. Só possuíam um número de telefone e um nome, o nome da minha mãe: “Carolina Mateus”. Deram-mo e abraçaram-me, pediram-me para ter cuidado, com medo que a verdade me magoasse demais. Mas eu sentia que precisava de descobrir, para conseguir conhecer-me a mim mesma. Para prosseguir com a minha vida para a frente. E pais, seriam sempre eles.

 

Os meus dedos suavam, toda eu tremia, digitei o número de telefone e hesitei durante alguns segundos. Respirei fundo e fiz a chamada. Tinha o coração acelerado e congelei quando uma voz rouca disse do outro lado da linha “Estou?”. A única coisa que consegui dizer foi “Sou eu, a Ana. A tua filha”. Por momentos o silêncio instaurou-se naquela chamada. Mas rapidamente ouvi- a chorar. “Ana… nunca pensei que me fosses ligar”.

Pouco falámos depois, mas tínhamos combinado um encontro num parque, não muito longe de onde eu morava. Estava nervosa à medida que as horas passavam.

Mais uns minutos e saí de casa em direção ao parque.

As folhas caíam agora das árvores, para dar lugar a outras novas que já espreitavam. Tinha um calor agradável. Fui caminhando pelo parque até que reparei numa figura estranhamente parecida a mim, sentada num banco, os cabelos ruivos, magra e com um aspeto algo envelhecido para a idade que supostamente tinha. Tive a certeza que era ela quando ela olhou para mim e as lágrimas lhe escorreram do rosto. Foi quando me dirigi a ela e, educadamente, me sentei e a cumprimentei. Não com um abraço, pois sentia uma controvérsia. Não queria, mas queria no fundo, mas não o fiz. Não a conhecia. Ela sorriu e pôs-me a mão no ombro. “Ana, estás tão grande, tão bonita”. Eu apenas tentava perceber que vida tinha tido aquela mulher para ter ficado com aquele aspeto tão triste e pouco saudável. Apenas me saíram da boca as poucas palavras que tinha realmente de dizer. “Porquê? Porque é que me abandonaste?”.

“Ana… eu abandonei-te para poderes ter uma vida melhor”. “Mas porquê?”, perguntei. Não poderia ela ter-se esforçado mais um pouco e ficado comigo?

“Era nova demais e com muitos vícios, o teu pai desapareceu e eu não tinha ninguém, sou uma sem-abrigo e já o era na altura. Foi quando vi um casal chorar à porta da igreja, falavam um com o outro, falavam com Deus ao mesmo tempo. Pediam um milagre, não conseguiam ter filhos. Vi como desejavam tanto um, eras tu Ana, tu eras o milagre deles.”

Eu estava perplexa, as lágrimas corriam-me pelo rosto. Ela também chorava. Levantou-se e abraçou-me. Disse mais uma vez antes de se ir embora: “Ana, eu abandonei-te para poderes ter uma vida melhor, mas nunca deixei de te amar”.

Antes que eu conseguisse fazer algo, ela tinha desaparecido por entre os arbustos.

Uma sensação de vazio apoderava-se de mim, mas de alívio também.

 

Inês Ramos

 

Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 07:30  Comentar

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