Conheceram-se num bar. Troca de olhares e um “olá, estás boa?”, servido com um sorriso de dentes brancos e perfeitos, serviu para quebrar o gelo e a contenção da libido sexual. Coincidência... “A tua universidade não é longe da minha!”. Seguiram-se meses de paixão. Cada beijo como um último, cada palavra como um segredo. O mundo era deles e só deles era esse mundo. Estudos e festas. Mas mais festas do que estudos... Afinal, YOLO! Meses passaram, assim como frequências e exames. Tempo de voltar à terra. Mas, afinal, estas não ficavam tão perto como as universidades...
Intervalo.
Sempre gostou de motas e de carros. Guardava religiosamente os modelos que mais gostava. E gostava de todos. Os outros putos (parvos), esmurravam a tinta e entortavam os pneus dos seus. Que desperdício...
E o miúdo foi crescendo. Ao mesmo ritmo da sua vontade de ter uma mota. Mas, desta vez, “a sério”. Desdobrou-se em apelos e promessas, assentes nas boas notas do liceu. Vergados pelo cumprimento e pelo desgaste, os pais, desgastados, cumprem. Um aceno à janela, posterior ao normal “tem cuidado filho... existem muitos malucos na estrada.” Primeira sem puxar porque a mãe está a ver... segunda a fundo porque já é depois da curva. Terceira até gritar. A quarta não chega a entrar. No cruzamento, vindo da esquerda, chegou o carro que não devia lá estar. Naquele momento. Naquele metro quadrado.
Intervalo.
Nasceu pobre mas tal nunca lhe roubou os sonhos. Criança preferida dado que era dotado de algo que o diferenciava dos irmãos. E estes gostavam dele. E como gostavam! A exceção à regra empoderava a fratria. Ficava provado ao mundo que todos poderiam ser mais. Mais do que eram. Principalmente mais do que os outros esperavam que eles fossem. A “joia de menino” passou a “joia de rapaz” e, lá no bairro, o orgulho que nele tinham já ultrapassava o agregado familiar. “Ainda vai ser doutor” profetizavam as velhas. Aquelas que com ele tinham andado ao colo. Boleia à noite porque a casa ainda é longe e porque o tipo é amigo. Amigo, amigo, mas daqueles mesmo amigos, não é. Mas é um “mano”. “Na boa, deixas-me em casa” mas a “moina” não deixou. O quilo de “branca” era o terceiro passageiro.
Intervalo.
Do balcão do café central vê chegar a morena. Trás tiques de imigrante, mas isso, desta vez, não o afeta. De louco até aceita ir às festas da terrinha. Na cabeça já não conta o que é parolo. O menino, agora da cidade, troca a razão pela fantasia. Troca de olhares e um “olá, estás boa?”, servido com um sorriso de dentes brancos e perfeitos, serviu para quebrar o gelo e a contenção da libido sexual. Coincidência... Da terra, a outra que não esta, veio a morena para vê-lo. A outra. Não esta.
Fim.
As máquinas fazem barulhos que não queremos ouvir. Os tubos mostram coisas que não queremos ver. Os espaços cheiram a produtos que não queremos cheirar. Tudo é limpo mas não queremos estar aqui. Da janela deste quarto não há acenos. A chuva, lá fora, não dá tréguas. Cá dentro, é o tempo que não as dá. O miúdo que gostava de motas esmurrou a pintura e entortou os pneus. E as costas. E o pescoço. E o baço. E quatro costelas. E um braço. E uma perna. E a cabeça. A bata branca comunica o veredito. Nem se lembram do nome do mensageiro. Esse pano parece que entrou a flutuar no quarto. Etéreo. Sem rosto. As máquinas são para desligar. Vergados pelo cumprimento e pelo desgaste, os pais, desgastados cumprem.
Fim.
Gritam e gritam mais alto. Perguntam e insinuam. Tratam-no como um bicho. Um delinquente. Nasceu pobre mas cresceu como preferido. Onde está isso agora? A admiração? A esperança? O futuro? O bairro apanhou-o. Ou a fama deste. Lá, nesse sítio não existe gente boa. “São todos iguais”. “Subsídio-dependentes”. “Ralé”. O “mano” não o ilibou. A cooperação e um cúmplice atenuam as coisas... Não tem cadastro mas vai ter de “cumprir”. Era muita “branca”... A parte de dentro dos muros altos é uma visão desconhecida. O choro arrasta-se até à cela e arrasta-se no tempo. Lá dentro também há quem goste dele. Mas não é amor fraterno... Dor, humilhação, abuso, consumo. Não era muito tempo, mas foi a tempo de o destruir. O lençol passa no pescoço e a cadeira cai no chão.
Fim.
Rui Duarte