Foto: Walk In The Fog - George Hodan
A geração nómada é agora uma espécie em vias de extinção. Outrora teria sido a comunidade mais alargada, que prosperava em diferentes partes do globo. Após uma era de catástrofes naturais, em que vastas áreas terrestres se tornaram inóspitas, a autoridade dourada conseguira mobilizar os humanos em fortalezas protegidas, mas altamente controladas em que, por troca de dinheiro e conforto, nenhum dos humanos não poderia sair além dessas fronteiras, submetendo-se às regras das muralhas. Muitos nómadas capturados em terrenos próximos dessas fortalezas, acabariam por sucumbir e tornarem- se, meramente, humanos.
Para controlo das massas proliferava agora a ideia de que os nómadas eram, apenas, um mito. Nos livros de História os nómadas surgiam na secção “Crenças e deuses”, difundindo a ideia de que os nómadas eram personagens criadas por humanos, desesperados pela fome que alastrara depois dos constantes terramotos que assolaram toda a Terra. A imagem do retorno às zonas desvastadas e desprovidas de qualquer recurso, contribuiu para que os pais confirmassem junto das crianças a inexistência ou desconhecimento total de tais seres. A pouco e pouco, esqueceram-se dessas ligações. Apesar de humanas e das constantes confirmações adultas de que os nómadas não passavam de um mito, ainda assim, as crianças sentiam um enorme fascínio por esses seres. Devido a esse fascínio e à quantidade de nómadas capturados que se corrompiam, a autoridade dourada considerara prudente deixar algumas linhas alusivas a estes seres nos livros de História, para que pudessem classificá-los de crenças irreais e contornar a imaginação infantil.
- Já há algum tempo que permanecemos aqui. Temos de continuar caminho. Não podemos viver sempre escondidos – disse assertivamente.
- Mas, eles virão atrás de nós – respondeu com desespero.
- Não, enganas-te. Virão atrás do que transportamos. Nunca te esqueças disso! – corrigiu.
- Mas eles não nos podem tirar o que carregamos! – exclamou.
- Não serão eles a tirar-nos. Poderemos ser nós a desistir. A tentar-nos. Devemos continuar caminho! – prosseguiu.
- Desistirmos? Como assim? Nós somos nómadas, o sonho vive em nós. – disse incrédulo.
- Lembra-te, houve um tempo em que todos os humanos eram nómadas. Passo a passo foram fixando-se e submetendo-se à autoridade dourada. Abdicaram do sonho em prol da autoridade. O poder sugou-lhes as réstias de sonho que carregavam. Tornaram-se, apenas, humanos. – explicou.
- Não deixarei nunca que me roubem o sonho. – afirmou.
- Não te iludas mais uma vez. Não serão eles a roubarem-te. É o brilho do dinheiro que te tenta. Só se acreditares, com todo o teu ser, no sonho que transportas, poderás resistir. Caminhemos, a nossa missão persiste. Ainda existem humanos com réstias de sonhos. – recomendou.
- Mas, eu acredito no meu sonho! – exclamou.
- Deixa-me que te explique. Eu já vi acontecer. Primeiro, defendes com todo o teu ser o teu sonho. Aos poucos, vão mostrando como o dinheiro te permite fixar e não te cansares com caminhadas, caminhos perigosos e até escassez de recursos para o teu bem-estar. Depois, dizem-te que não precisas de abdicar de todo o teu sonho, só de uma parte. Aí é que está o perigo. A partir do momento que te submetes ao poder do dinheiro, foste corrompido. Depois é só uma questão de tempo. Não, porque és mais forte ou mais fraco. Mas porque duvidaste e escolheste o fácil. Antes achava que era o dinheiro, em si, que corrompia os nómadas. Mas não é o dinheiro. É aquilo a que este dá acesso. Uma ponte para o esquecimento do que a caminhada traz ao sonho. É o poder de esquecer. E isso só tem um final - a morte do sonho. – disse calmamente.
- Mas, porque é que eles nos querem corromper? Porque somos perseguidos? – perguntou exaltado.
- Talvez porque, no fundo, saibam que o que transportamos é muito mais valioso do que o poder que eles ostentam. Já pensaste, se cada um dos humanos despertasse o sonho em si mesmo? Como se tornariam poderosos? Como não precisariam de se submeter? Como estariam preparados para as caminhadas? Os humanos esqueceram que o maior poder reside neles próprios. E é assim que a autoridade dourada os controla. Adormecidos. Por isso te digo sempre, nunca pares. – observou.
- Não pararei. – afirmou convicto.
- Enquanto caminharmos juntos não deixarei que nos corrompamos mas, se tal acontecer a um de nós, o outro deve seguir caminho. Cada um é responsável pelo sonho que carrega e em honra aos nómadas, mesmo aos que sucumbiram, temos o dever de continuar. E os caminhos continuarão agrestes. Isso posso assegurar-te. – desafiou.
Cecília Pinto