Foto: Kettle - KenBoyd
Está no ponto. Percebe-se à distância que está na hora de colocar o chá na água fervente. Não precisamos de nos queimar nem de estar longos e pasmados minutos a olhar para a chaleira. Ela avisa-nos.
À distância sabemos, como ao longe o farol grita para o marinheiro, dá- lhe referências, orienta- o e permite-lhe evitar os perigos daquela costa.
Bons gritos.
Um berreiro, alarido, discussão descontrolada, feroz, animalesca, é sinal de má educação, falta de respeito, mais que descontrolo, tentativa de, pela força da voz ameaçadora, dominar, subjugar os outros.
Maus, péssimos, gritos.
Não devo, não posso ordenar, nem discutir à base do grito. O grito é estúpido, impede-me de ouvir, sequer de compreender o outro. Estou a ferver água e não tenho mesmo chá nenhum. Nem de pequenino, nem de crescidinho!
Sou confrontado pela tragédia pessoal, que cai sobre mim sem aviso, sem preparação, tem uma dimensão medonha, descomunal, desumana, impossível. Perco o chão, falham-me as referências. A dor é imensa, insuportável, terrível, funestíssima... Grito!
Grito humanamente, seja ou não em surdina. Choro e grito. Preciso de dar liberdade à dor insuportável e sem controlo.
Preciso de escape, para conseguir serenar e poder, depois, sofrer de forma socialmente aceitável. Pessoalmente aceitável.
Jorge Saraiva