Foto: Lemons - Richard John
Nunca houve tanta instituição de caridade como agora: empresas, organismos do Estado ou não governamentais, associações e entidades, com siglas quase indecifráveis, com enfoque na solidariedade, na proteção do indivíduo e do seu direito à subsistência, à segurança e a todos os cuidados primários.
Mas também nunca houve tanta solidão apregoada, tanta miséria humana, tanta desigualdade, permitidas (e perpetuadas) por gente com poder, dotadas de conhecimento e de estratégias de intervenção que nada mais são do que um manancial de benefícios em causa própria.
Nunca houve tanta gente alerta para as causas sociais, para o voluntariado, para a partilha do seu tempo, da sua condição humana, mais consciência do mundo, dos outros, na busca da consciência de si próprio, como no tempo presente. E como dói – descobre muita gente, com espanto – dar sem realmente esperar nada em troca (sim… às vezes, nem um obrigado), dar perante os desafios da humanidade, sem sucumbir à crítica, ao julgamento, sobretudo perante a ingratidão ou a ofensa. Na resiliência que se constrói, também a capacidade de enfrentar os desafios de outro ser humano e os próprios demónios, mergulhando na dor para sair dela. Como dói, a consciência. Como cura.
Oiço muita gente falar do quanto gostaria de ajudar, de fazer algo, um voluntariado, mas não podem, não têm tempo, têm família, empregos e uma carrada de obstáculos que os impossibilita de concretizar esse desejo. Não me cabe a mim julgar ninguém ou saber de que forma enfrentam os seus próprios desafios. Fico triste, todavia, quando percebo, no cantinho do olho, uma tristeza velada de quem realmente sente esse apelo e se sente frustrado por não o fazer. É para eles que escrevo hoje. Para aqueles que não têm tempo (ou meios) para dedicar umas horas semanais a uma instituição, para aqueles que não sabem como fazê-lo, para aqueles a quem a condição do outro não é alheia à sua própria condição e sentem faltar algo nas suas vidas por não serem solidários. Podem fazer muito, podem fazer a diferença na vida de vários seres humanos. Um que seja, acreditem, será extraordinário.
Comecem com o senhor da mercearia que, todas as manhãs, se cruza convosco e só espera um “Bom dia”, olho no olho; aquele minuto, junto da caixa, acompanhado de um sorriso, pode fazer toda a diferença. Ou comecem com a primeira pessoa que veem de manhã, ao abrir da pestana, e que partilha a vossa vida; fazê-lo antes de olhar para o telemóvel pode significar um chão seguro debaixo dos pés, em cada jornada. Se o vosso vizinho precisa de ajuda e podem ajudar, ajudem. Sem pedir nada em troca. Vale o primo, a mãe, o ilustre desconhecido, a velhinha que vive no 35, a senhora da padaria, o mecânico ou o carteiro, desde que seja genuíno.
Quando eu era catraia tinha um tio que, pelo menos, duas vezes por semana comprava limões, salsa e feijão-verde a uma senhora que vendia, com uma pequena banca, na porta do mercado. Acompanhei-o diversas vezes e interrogava-me sobre a quantidade de coisas que ele comprava e de que forma ele e a minha tia podiam consumir tanta coisa. Num certo dia, vencida pela curiosidade, perguntei como era possível comer tanto limão, tanto feijão… quando o meu tio comentou que pretendia ajudar a senhora, perguntei porque não lhe dava, simplesmente, dinheiro (já que podia), em vez de comprar tanta coisa. Na onda do seu sorriso respondeu à minha ignorância com carinho, dizendo-me que a caridade sem dignidade não existe; e que havia gente que o fazia, sim, mas que aquilo não era realmente caridade, era negócio. Acrescentou que quando queríamos e podíamos ajudar alguém, o devíamos fazer sem diminuir, sem humilhar, sem procurar exposição ou a atribuição de um prémio. Com respeito, humildade e integridade. A senhora Maria vendia os seus legumes e frutos, prestava um serviço, dizia-me ele. Comprar-lhos a um preço justo permitia-lhe valorizar o trabalho, o esforço e o sacrifício daquela doce senhora que, com quase oitenta anos na altura, ainda cuidava da terra, de um filho adulto com diversos problemas e vendia o fruto do seu trabalho, de segunda a sexta, na porta do mercado. Fez-me tudo muito sentido, mas disse-lhe que não havia respondido à minha questão inicial: os legumes, os limões, a tonelada de salsa, que destino lhes havia sido reservado? Depois de uma sonora gargalhada disse-me que teria deixado de comprar à D. Maria se tivesse deixado apodrecer um limão que fosse. Chegou a temer que isso pudesse acontecer, mas, ao longo dos anos, apareceu sempre alguém, na hora certa, com quem partilhar, o que lhe havia poupado esse constrangimento. Disse-me que não eram as palavras que lhe dirigia o que realmente contava, mas o que fazia, com o que ela produzia e vendia, quando lhe virava as costas. Com ele aprendi que a solidariedade não é um casaco que se veste consoante a estação do ano, tão pouco é algo que nos dá (ou deve dar) protagonismo ou “isenção moral”. Visa o genuíno bem de alguém, em primeiríssimo lugar, e o bem da humanidade, de uma forma mais abrangente.
Por isso, façam apenas o bem pelo bem. Parece difícil, bem sei, mas é tão fácil dizê-lo quanto fazê-lo. Não precisam de ir para o Quénia fazer voluntariado para se sentirem úteis. Abram os olhos, o coração e olhem em volta. Estendam a mão e façam milagres ao pé da porta. Se calhar não vão aparecer nas revistas ou ganhar um Nobel, mas garanto-vos a mesma sensação de orgulho e alegria do melhor dia da vossa vida. Há tanto sofrimento à nossa volta a que não podemos acudir, comecemos pelo que está ao alcance da nossa mão. Podemos fazer muito, de forma anónima, todos os dias. Não esperem “o momento”, comecem hoje. Pode parecer-vos tarde, mas jamais será em vão.
Alexandra Vaz