Foto: Furious - Robin Higgins
“Um dia destes, acordo desta letargia, esbofeteio-me, com vigor, para a vida não ter de o fazer mais, fecho todas as portas entreabertas sem olhar para trás e decido que é tempo de viver a sério.” Renovei estes votos, ano após ano, a cada desafio enfrentado; quis muito acreditar que isto seria suficiente para que a minha alma escapasse daquilo que a consumia. Aceitei dos outros a falta de razão, de justiça, de integridade, como se não as merecesse, para não enlouquecer. Aprendi, muito cedo, a suportar em silêncio, sem chorar, a maldade daqueles que deveriam proteger-me.
Todavia, entorpecidos os sentidos, manter a cabeça à tona revelou-se uma tarefa titânica. Viver entre o que se faz porque deve ser feito (ou assim se enraizou a coisa) e aquilo que realmente nos faria flutuar, sem esforço, é completamente desgastante. Sentir a alma voltar-nos os pés noutra direção e ainda assim ficar ali, onde nada se pode curar é, simplesmente, insano. Não há forma prosaica de o dizer. É-me, particularmente, penoso porque o masoquismo não consta do meu cardápio, em dia nenhum do calendário. De bom grado eliminava esta ferida, num golpe misericordioso e, talvez, talvez ainda restasse algo de mim que se pudesse salvar. Escapei o melhor possível durante décadas. Enfrentei vários demónios para os deixar partir, fechei algumas das tais portas escancaradas e aprendi, muito recentemente, a dar explicações, apenas e só, a quem as merece. Mas, volvidos todos estes anos, constato que não curo a minha maior ferida, que ainda permito uma violência emocional desmedida e que sou completamente incapaz de a entender ou de me proteger dela.
Andei cá e lá, movida pelo amor que me liga a ti, nesta formatação da minha pessoa, na qual tu foste, sem dúvida alguma, a medida de todas as coisas. Vivi na tua sombra, respirei o teu dióxido de carbono (acreditando ser oxigénio), fui o alvo das tuas críticas, nesta vida que me foi roubada sem apelo nem agravo. Foste e és protagonista na tua vida, sempre a mãe de todas as dores, a mais sofredora, a que mais lutou, a mais prendada, a mais organizada, cobriste-te com esse manto de tantos predicados luminosos que deixaste de nos ver – continuo ingénua, vês? Desconfio que nunca me viste realmente, não como sou. Esperei que um dia me amasses, me desses paz, me fizesses sentir segura mas, até hoje, partilhar o teu lar é mergulhar, de olhos bem abertos, num espaço que me fere, onde durmo e me movo hipervigilante, frágil e assustada. Crescer não me tornou imune a ti, não impediu que te movesses na minha vida como se esta te pertencesse. Uma sequela da tua vida, à mão de semear, sempre que dela precisasses. E sim, tu precisas sempre. Tu precisas sempre mais do que toda a gente. Não interessa o esforço dos outros, os sacrifícios que fazem para colmatar as tuas necessidades, não interessa o quanto nos matas lentamente, desde que haja alguém que escute as tuas lamúrias. Na tua dor és Rainha, na dor dos outros és Comodoro. E eu sou o teu permanente dano colateral, simplesmente, porque me permiti acreditar, durante demasiado tempo, que esta história podia ter um final feliz. Um dia irias ser grata pelo amor que tinhas e, esse milagre, ia parecer-te tão grandioso e tão sublime que nunca mais te queixarias de nada. Nesse abençoado dia, irias perceber todas as coisas maravilhosas que ainda tinhas, todas as bênçãos que recebias diariamente e o quão privilegiada, afinal, tinhas sido. Serias Amor e Gratidão e eu estaria, automaticamente, curada – gostava tanto de ter conserto. Seria linda, a metamorfose singular da minha alma: de pião das nicas à redenção. Sonhei, repetidamente, com esse dia, acreditei com todas as minhas forças que, no âmago da minha pessoa, permaneceria, intacta, a capacidade de te aceitar a qualquer altura, sem contrapartida, sem recalcamentos, plena de amor. Mas a vida tem-se escoado a cada dia, levando com ela a força e a esperança que me restavam nesta nossa relação.
À medida que me desformato, constato, com profunda tristeza, a extensão desses danos dentro de mim. Como pude acreditar que podia passar por isto (quase) incólume é algo que me transcende. Neste lugar que ocupo agora, onde mal respiro, oiço o eco da tua voz e, mesmo à distância, até esse, me empurra para baixo. Voltaram o buraco no estômago, o nó na garganta e a sensação de abandono, alimentados pela migalha que ainda permito que me dês. Nela, a tua total incapacidade de ouvir o meu grito, ainda que este seja, mais amiúde, sonoro e lavado em lágrimas. Tudo passa, tudo é ligeiro. Nos outros. No palco da existência, debaixo do teu holofote, apenas tu e todos os teus dramas. A tua cacofonia silencia qualquer queixume. Já não consigo viver tão zangada. Não consigo dormir de olhos abertos, punhos em riste e acordar, semana após semana, com medo de sair da cama e de enfrentar as exigências do dia. Se não te consigo transmitir nada de bom, não posso permitir mais que me arrastes contigo para esse catastrofismo militante do qual te recusas a sair. Já percebi que estás em casa, nesse lugar de dor que tratas com tanto esmero. Mas eu não posso continuar aí, contigo, tão perdida. Quem sou eu, afinal, fora do teu sistema solar? Por que é amar-te uma sentença de morte? Preciso de asas para voar mas as minhas raízes foram-me violentamente arrancadas: como faço agora para me levantar? Preciso de um lugar seguro na minha vida. Preciso de dormir sem medo. De respirar profundamente. E de aceitar, de uma vez por todas, que há um preço a pagar por permanecermos onde nos ferimos; eu, reconheço, já lá estou há demasiado tempo. Não quero mais esta pena perpétua, camuflada de amor, em nome do bem maior. Por que somos quem somos, na vida uma da outra, permanecerá um mistério. Aceito-o, finalmente. Agora, por favor, leva-o contigo e deixa-me ser a pessoa de quem precisei a vida inteira.
Alexandra Vaz