Foto: Train – Peter van de Ven
Estação de Campanhã, sábado de manhã, um cheirinho de primavera no ar, uma brisa agradável carregada de dialetos vários. Após o primeiro lanço de escadas, noto a presença de diferentes volumes, deixados aparentemente ao acaso, como se alguém tivesse saído à pressa e esquecido os produtos domésticos: havia sacos com comida, rolos de papel higiénico, baldes e produtos de limpeza, roupa em trouxas. Percorro o corredor em silêncio, não vejo ninguém por perto. Na chegada à gare a que me destino, duas senhoras, vestidas integralmente de negro, rodeadas de sacos, exaustas. Uma das senhoras senta-se na escada, fecha os olhos, balbucia algumas palavras em espanhol, pede a Deus que a ajude, pede força para concluir a sua missão. Nas muitas rugas da sua cara aninha-se o descanso que nunca a quis abraçar. A outra senhora continua num ritmo frenético, escada acima, escada abaixo, carregando e largando sacos.
Procuro um banco à sombra, esqueço as mulheres, a viagem, sorvo o primeiro café do dia com deleite – apesar do copo de plástico e da sua origem duvidosa. Quando o comboio chega procuro um lugar junto de uma janela e afundo-me, com preguiça, no banco. Dois minutos antes do comboio arrancar, o silêncio é interrompido pelos gritos de alguém: reconheço o sotaque espanhol nas palavras pronunciadas em português, “Senhor, por favor, segure a porta aberta. Temos muitas coisas para carregar”. Do lugar onde me encontro não as vejo mas, da minha janela, consigo ver alguns dos volumes, ainda no exterior. Metade das coisas está já dentro do comboio, a outra metade está ainda espalhada pela gare e ao longo do corredor da estação. E o comboio quase a arrancar...
Em frente a mim dois polícias apreciam a cena com curiosidade. Nas costas dos coletes, pode ler-se “Polícia – Esquadra de Segurança Ferroviária”. Miram as mulheres enquanto a recolha, insana e exaustiva, decorre. Discutem algo sobre um guarda-chuva caído ao lado dos carris. Tentam, sem sucesso, tirá-lo com um cassetete. Menos de um minuto para o comboio arrancar e ainda há volumes na gare. A porta abre, os passos apressam-se, a porta fecha, os volumes vão desaparecendo. Ninguém fala, a não ser as duas senhoras e os agentes em missão de salvamento do guarda-chuva. Num comboio cheio de gente, o silêncio é pesado. O silêncio dos que assistem, impávidos, cansados das “suas vidinhas”, perdidos em dramas egoístas, aparentemente distraídos, mergulhados nas redes sociais ou num jogo. E eu, ali, sentada, simplesmente. Sem desculpas.
Por fim, o comboio atrasa-se exatamente um minuto – o tempo suficiente para que o último dos volumes seja resgatado. As mulheres conseguem, finalmente, sentar-se. Não me mexo, não me viro. Não percebo porque o faço, ou melhor, porque nada fiz durante aqueles minutos. No meio da minha apatia, porque não me levantei atempadamente? Porque não ofereci ajuda como faço tantas outras vezes? Definitivamente, há dias em que não me orgulho de mim própria. Sinto-me tão idiota. Hoje, não olho nos olhos de ninguém, não alimento conversas, não oiço música, não leio um livro, não consigo, sequer, respirar fundo. Baixo a cabeça e fecho os olhos, quero permanecer invisível até chegar ao meu destino. Respeito o silêncio dos outros. O meu, é de vergonha.
Alexandra Vaz