Não sei bem quando vi a Morte pela primeira vez. Segundo as minhas contas terá sido a do meu Avô. A mulher dele, minha Avó, exigiu-me o preto por dias. Os meus pais não rebateram. Eu tinha dez anos.
A sensação do luto, esse sentimento ligado a uma perda, normalmente trazendo com ela dor e angústia - eternas enquanto duram - não entra na minha casa. Nunca morou em mim. Não concebo viver um luto. Sei que não é racional, é emocional; para mim é todo um corpo e uma alma a avançarem para um caminho escuro, negro, cancerígeno, até a um fim – seja qual for a vantagem ou a desvantagem desse final. Tal como uma carta com um esqueleto quando lançamos o destino dos outros, o fim não implica Morte. A Morte não implica fim. O luto pode ser limpeza. O luto deve ser limpeza. O luto deve ser respeito. O luto não é só o preto ou o branco das calças e do casaco.
Mas o luto não habita em mim. Nunca habitou. Sou das que cai das falésias e se esmaga no chão agreste de terra batida e não enluta. Sou das que ouve (quantas vezes, Vida, te ouvi a anunciares-me isso?!) “Quero preparar-te para uma notícia: ele morreu.” “Sofia, ela está morta.” Ouvi vezes sem fim a Morte nas palavras das notícias dos outros. Nunca fiz luto. Limpei cadáveres e beijei-os na cara. No dia seguinte não mais me lembrei deles.
Por vezes pergunto-me se não deveria assumir um pouco o papel da carpideira chorosa. Reconheço que me perco na minha própria (in)sensibilidade. Vou para casa pensar nela. Não sofro a perda de um familiar, de um cão, de um emprego. Sofro mais por quem não nasceu, pelo que não nasceu, por aquilo que nem ousei que se criasse. Creio que o meu maior luto será mesmo o luto pelos sonhos não cumpridos, pela estrada que não segui, pelo livro que escrevi e que esqueci na gaveta das memórias sem interesse.
Não sei se por defesa se por ciclos fechados, a verdade é que vivi sempre intensamente a Vida mas nunca a Morte do que tive e de quem tive. Um pouco como o autocarro seguinte que passa minutos depois de perder o atual. Faz-me bem pensar que sigo em frente, nariz empinado e costas direitas.
Sou quem recusa o luto: o luto da geração atual, das doenças do século, da política que escolhemos, do meu País moribundo. Sou das que abraça o luto dos outros, que limpa as lágrimas nas saudades dos amigos que precisam, sou a força da dor de quem se abale na Morte em si e no Luto seu.
Mas não enluto. Nem no meu Avô o fiz, mesmo desrespeitando veemente o que a minha Avó desejava.
Quando um dia chegar a Morte também a quero assim: nua, crua, fria. Que abracem quem de facto me amou. E que sigam o seu caminho sem mim. E sem luto. Porque nada se perde e tudo se transforma.
E a Vida é tão mais bonita que a Outra… Até a palavra é mais melodiosa. E essa sim, habita em mim com a luminosidade e força de quem move as montanhas.
Concretiza. Concretiza sempre! Concretiza em todos os projetos que avançares na tua Vida. E o luto será apenas uma palavra que, provavelmente, se transformará em Saudade.
E assim mesmo o digo, em honra da saudade do meu Avô.
Sofia Cruz