17.10.16

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Foto: Angel - Emocje

 

Regresso do oitavo funeral, na minha família, em menos de quatro anos. Apesar da razão pela qual nos encontrámos, foi bom abraçar aqueles com quem raramente estou, conhecer alguns novos membros e constatar as mudanças, mais ou menos evidentes, em cada um de nós. Na verdade, com um ou outro parente, precisei de alguns segundos, do registo da voz, de um pormenor, para perceber com quem estava a falar. Achei-os diferentes da imagem que tinha deles, não os reconheceria na rua se com eles me cruzasse. O tempo passou para todos nós.

Eu tive sempre parecenças fisionómicas com este lado da família, por isso me surpreendi com a dúvida levantada por um primo, para quem eu havia sido sempre a “cara” do meu pai: “tem graça… mas tu agora és parecida com quem..? ah, pois, estou a ver, olha que engraçado… estás igualzinha à tua mãe”. Passaram-se quatro décadas: posso eu ter mudado tanto, em tão pouco tempo e não me ter dado conta disso; pode o mesmo ter-se passado com alguns dos familiares que hoje revi e que conheci de outra forma? Arrisco dizer que alguns de nós terão partilhado este pensamento. Tentámos, apressadamente, “por a conversa em dia” mas sabemos que, nestes encontros, ficamos sempre pela versão mais sucinta do resumo das nossas vidas.

Podia partilhar muito do que vivemos nos últimos dias mas, dissecar o luto dos meus familiares, não tornaria o processo menos doloroso ou mais rápido. Na realidade, nenhuma palavra pode descrever, fielmente, a intensidade do que cada um de nós sente neste momento, no somatório de tantas perdas. Falarmos das nossas parecenças físicas ou de caráter foi, talvez, uma forma de não nos concentrarmos na razão pela qual estávamos ali reunidos. Quando nos despedimos, as opiniões sobre “quem era parecido com quem” não eram unânimes, mas não nos digladiamos. Hoje pesou a finitude da vida, mais do que a herança genética.

 

Deixo-me embalar pelo som do comboio em que viajo, precisava dessa paz antes de entrar em casa. Aceito o meu próprio processo, concentro-me nele, rompo esta bolha de sensações e pensamentos ambíguos, ainda que os demais permaneçam herméticos na sua dor. A pergunta, insistente, dentro da minha cabeça: sou parecida com quem, afinal? Na minha essência, ou naquilo em que me reconheço, o que é meu, o que foi herdado?

Apesar de todas as minhas dúvidas, quando ponho o pé fora do comboio, caminho sem vacilar. Não sei se é a força que me move ou uma imensa vontade de viver. Não sei que reboliço é este que sinto dentro de mim, uma imparável energia que transborda do meu corpo físico e voa, livre, no firmamento. Não sei serenar os batimentos do meu coração, não sei acalmar a corrida. Não sei que braços me acolhem, que lágrimas partilham a minha dor. Não sei tanta coisa…

Sei que sorrio sem pensar. Que rio com vontade e choro como se não houvesse amanhã. Sei que comigo caminham o medo e a felicidade, a dor e a paz, a incerteza e a força, o amor e a amizade. E algo que não consigo explicar, ou arrancar de mim, que me empurra para a frente, mesmo quando não sei para onde vou.

Sei que sou apenas humana, que sou falível e frágil. Que tenho dias em que nem o diabo me quer para companhia. Sei que a minha psique será a minha melhor amiga e a minha pior inimiga, sempre que eu deixar. Ninguém me poderá fazer tanto mal quanto consigo fazer a mim própria… Sei que, aqui e ali, vou cair do cavalo e que ficar lá estendida, não é solução. Sei que são nuvens muito negras, as que de mim zombam quando eu toco o chão. Sei que vou errar e errar, e errar de novo, e aprender. E crescer. E ser cada vez melhor.

 

Sei que sou feliz. Que sou uma abençoada pelas coisas extraordinárias que tenho vivido. Pelas pessoas extraordinárias que partilham a minha existência. Pelos momentos extraordinários, pelos sentimentos avassaladores, que vivem debaixo da minha pele. Pela Vida em mim. Pelas Vidas comigo. Pela Vida em Nós. Quero cantar, mesmo quando a voz se me embarga. Quero dançar, ainda com mais vontade, quando mais dói existir. Quero aprender, conhecer, beber do conhecimento de almas fabulosas, de vidas, que uma vida inteira não chega para conhecer. Quero rir. Quero abraçar. Quero a plenitude de uma vida que não se esgota, que não perece. Quero os sentidos todos num só. Quero o pulsar da Alma em cada célula do meu corpo. Quero pedir, com humildade, que na minha existência neste Cosmos, eu possa sentir tanto…

 

Sei o que trago do meu pai e sinto-me profundamente honrada por ter o melhor dele. Mas, neste dia de luto, é a minha mãe que reconheço em cada um dos meus sentimentos. É dela a resiliência, a perseverança, a capacidade de sorrir no meio do caos, a força e a serenidade; mesmo que ela não se reconheça atualmente nestes atributos. Não sei se a minha fisionomia se assemelha à dela ou não, mas sei que herdei da minha mãe aquilo que me estrutura enquanto ser humano, aquilo que me faz querer ser, sempre, melhor pessoa. Herdei dela a capacidade de sonhar e de dar sentido aos dias, sem a ilusão de quem anda à deriva, mesmo quando dói muito.

Até ao dia em que se reúnam em torno do meu caixão, luto, amo e sigo em frente, honrando a dádiva da minha mãe e dos meus antepassados, e a singularidade da vida. Por mim, pelos que já partiram e pelos que ainda caminham comigo. É esta a herança mais preciosa que espero deixar aos meus filhos.

 

Alexandra Vaz

 

Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 09:30  Comentar

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