
Rodrigo Maria (nome fictício para Rodrigo, para Maria, para João, Ana, José, Luís e tantos outros) não se conformava. Mais do que a revolta que o acompanhava desde sempre, sentia uma total incompreensão pelo que estava a acontecer.
“O menor veio acusado de crimes dirigidos à propriedade e às pessoas, revela transtornos internos antissociais que motivam a ação delituosa e a sua reincidência. Sofre de perturbações que o impedem de se adaptar às normas. Perante os factos comprovados neste Tribunal de Família e Menores, o Rodrigo Maria não revelou sentimentos de culpa ou arrependimento, desconforto interno ou dúvidas. Constitui uma ameaça para a sociedade, pelo que determino o seu internamento por 2 anos em regime fechado.”
Com esforço, recordou parte dos “crimes” que o tinham conduzido até àquela sala fria do Instituto. Os vidros estilhaçados da sala de aula, as latas de spray despejadas na viatura da professora, a ninhada de Terrier afogados no lago, passando pela bola - uma simples bola!- roubada na loja do bairro, até se deter no susto que pregara à vizinha de cima e que esta aproveitara para morrer, atirando-se pelas escadas abaixo. “A velha nem gostava dos cães! Crimes? Mas que merda de crimes são estes? Quem são estes cabrões para me julgar?”. Cravou as unhas nas faces e arranhou até a pele ceder. Com os dedos ensanguentados desenhou um enorme “O” na parede branca. Uma raiva imensa apoderou-se daquele corpo franzino e tatuado por feridas mal cicatrizadas, provocadas por incontáveis automutilações. “Cabrões, grandessíssimos cabrões”, gritou ofegante enquanto percorria as paredes da sala com o olhar. Deteve-se num pequeno quadro desnivelado, suspenso por um fio. Enquadrada por moldura pindérica, uma frase bordada a ponto de cruz exultava: “O FUTURO ESTÁ NAS TUAS MÃOS”. Dirigiu-se para um canto da sala, baixou os calções, agachou-se, abriu a pernas, fincou os cotovelos nas paredes e defecou no mármore branco. Mergulhou as mãos de sangue nas fezes, completou a palavra ódio na parede e chorou. “Os cabrões nem sequer me perguntaram se eu cheguei a conhecer a minha mãe!”.
Uma mão firme de mulher agarrou-o pelo braço, levantou-o sem custo e foi sem custo que o arrastou até à porta da sala. À sua frente, um imenso corredor estreito, muito alto e simetricamente ladeado por portas, terminava num enorme Cristo cruxificado. “Vais imediatamente tomar banho e mudar de roupa. Quando terminares, falaremos sobre o castigo que vais sofrer”. A mão papuda e possante continuava cravada no braço franzino e Rodrigo Maria experimentou pela primeira vez na vida uma sensação de conforto. Desejou que aquele momento de felicidade não terminasse jamais.
Brecht: “Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem”.
José Quelhas Lima