A dez mil metros de altitude, acompanhado pela família, viajo para o funeral do meu cunhado. O espaço exterior parece vazio, sem sentido, e um turbilhão de pensamentos torna-me inquieto e confuso. Desvio o olhar mas não sossego. A posição alinhada e rígida dos passageiros naquele espaço limitado é estranha. Para onde vamos todos?
Nariz adunco, cabelo revolto, queixo saliente, sobrancelhas pronunciadas e um pequeno mocho na lapela. Procuro uma falha, uma pequena falha que me diga que não é verdade e observo-lhe as mãos. São os dedos dele e é mesmo verdade, não é?
A igreja da Lomba da Maia é pequena para acolher tanta gente e a religiosidade açoriana faz-se sentir de forma lenta e pesada. Os choros misturam-se com as orações, os abraços e os beijos, as flores e o incenso, por toda a tarde e pela noite fora. São cinco horas da manhã e eu receio pela saúde da minha querida sogra que ainda não parou de chorar e se recusa a abandonar a igreja. São dez horas. Os meus receios aumentam e tornam-se obsessivos. Sete padres oficiam a missa e a música e o coro que nos acompanham, a todos acalma por momentos. Alunos citam Pessoa e declamam poemas escritos para o momento. Começam os preparativos para fechar a urna, voltam os choros, mas a minha atenção concentra-se naquela velhinha frágil que está ao meu lado, quase a desfalecer, e eu sinto-me finalmente capaz de seguir uma linha de pensamento coerente. Volto a encontrar-me neste desencontro entre a vida e a morte. Somos fogos-fátuos iluminando e recebendo luz intermitente. Sem ela não existiríamos e, por cada luz próxima que se apaga, morremos um pouco de escuridão e falta de propósito para a nossa própria luz.
A urna desceu à terra ao som da “Pedra filosofal” e sinto que, apesar das lágrimas, o meu luto vai começar. Se bem o conheço, consigo antever por onde se espalharão as suas moléculas. Azáleas e hortênsias, golfinhos e cachalotes, plantas do chá e criptomérias, e mochos, muitos mochos, serão os felizes contemplados. E pela primeira vez voarão açores sobre as nove ilhas dos teus queridos Açores.
José Quelhas Lima