Foto: Hintergrund – Kai Stachowiak
Olho o reflexo do meu rosto sulcado pelo tempo, replicado nos vários pedaços do espelho caído. É como se a minha vida fragmentada estivesse representada naqueles pedaços: pedaços de alegrias, amores, conquistas, desilusões, tristezas, desamores, vitórias e derrotas.
O meu pai foi o primeiro a perceber que algo de errado se passava comigo, culpando a minha mãe disso. À medida que eu crescia ele ia percebendo que eu me distinguia do meu irmão, assemelhando-me mais da minha irmã. Eu abandonava as brincadeiras do meu irmão, um ano mais velho que eu, com os carrinhos e as pistolas. Ai como eu detestava brincar às guerras e às lutas! Deleitava-me sim, com as fantasias e brincadeiras mais tranquilas da minha irmã, dois anos mais velha. Partilhávamos os nossos sonhos e ambições personificando-os nas aventuras das “nossas” bonecas.
Sim, sofri, foi terrível ter que me confrontar com as transformações do meu corpo, este meu corpo trocado ao qual estava aprisionada. A voz subitamente tornou-se grave, as evidências fenotípicas masculinizadas foram se acentuando. Não reconhecia o meu eu neste corpo estranho de homem jovem. Eu era uma mulher, eu sentia-me uma mulher encarcerada num corpo masculino. Deprimi, despersonalizei-me, confundi-me, tentei fugir definitivamente deste corpo, libertar-me dele. Simultaneamente a esta luta desesperante por me encontrar, por me integrar neste corpo que me pertencia, mas eu não reconhecia, família e amigos afastaram-se, abandonaram-me. Não! Não fiquei totalmente só. A minha irmã, eterna companheira de aventuras, meu espelho de afetos, minha alma gémea, foi minha mãe, minha apoiante, mentora, minha reparadora de todos os meus pedaços quebrados.
Detenho-me nos fragmentos de espelho que refletem o meu olhar. É um olhar sereno, feliz, envolvido por um belo rosto feminino, contudo marcado por uma vida cheia e desafiante.
Tayhta Visinho