Hoje não estudo, não cozinho, não socializo. Não quero saber das contas, dos jogos mentais, das responsabilidades de todos, das querelas que vocês inventam para tornarem os meus dias mais animados, não quero saber de nada. Não sei se o mundo se irrita por não teres “nada para vestir hoje” ou se o teu irmão está passado porque ocupaste o quarto de banho “tótil de tempo”. Não sei quem limpou o cesto dos gatos a última vez, nem quem lavou a loiça ontem. Não quero saber da febre, das aftas, da diarreia, do total desarranjo apocalíptico em que me encontro, visto que mais ninguém parece vê-lo senão eu. Tentei dizer-vos isto mas nenhum de vós se cala tempo suficiente para me ouvir falar. Pois hoje já não vos oiço. Só quero que se calem e me deixem sossegada. Hoje não estou aqui para ninguém. Deixem-me tranquila, nesta quietude que me chama. Já disseram tudo. Já cuspiram argumentos suficientes para poderem sair, em marcha rápida. Não vos quero mais ouvir, a vós e a todos os outros que gritam do lado de lá desta porta. Saiam de uma vez, para poder fechá-la sem mais delongas.
Quero dormir. Preciso muito de dormir. Não, não estou a ser dramática. Preciso de dormir para deixar de dar ouvidos a uma mente que, neste momento da existência, está totalmente contra mim. Quero calá-la. Não quero que ela me cale a mim.
Não, não quero dormir para sempre. Quero dormir um bocadinho. Uns dias, era bom, fazia-me bem. Quero desligar de tudo aquilo que não consigo fazer agora. Estou doente, sem força, regada de fármacos até à erva daninha, sem comer há vários dias; e quero estar aqui, no frenesim que me é habitual, como se o mundo se movesse na cadência do meu pestanejar? Em boa verdade, o mundo continua ao seu ritmo. Fui eu que entrei em contramão. Estou em rota de colisão comigo mesma e tudo que posso fazer agora é desligar deste estado de prostração em que me encontro.
Quero dormir para não tomar decisões das quais possa vir a arrepender-me. Lição aprendida ao longo do tempo - e no somatório de vários traumatismos emocionais: nunca tomar decisões importantes em momentos de angústia extrema (ou de euforia “uh-la-la”, pelas mesmíssimas razões). Quero dormir para que se dissipe da minha mente este meu “eu” insidioso que me convida gentilmente a descansar. Nos meus dias mais negros espera-me na alcova, em busca dos despojos de um dia que nunca lhe dei. Que jornada lhe posso eu entregar que não signifique perder-me? Quero dormir porque lhe resisto ainda, não porque me rendi.
Preciso desesperadamente de calar este cérebro. Pareço uma microrradiografia, num dia de muito vento e pouca cor, com a cabeça a mil e o corpo embalsamado. Que raio posso eu tomar para dormir, que ligue bem com o cocktail que tomo há dias (inclui, em jeito de bónus, umas belas picadas nas nádegas, dia sim, dia sim) e que não me mande para os anjinhos prematuramente? Descubro a pastilha. Li bem aquilo? Um comprimido para “dormir 6 a 7 horas”, no mínimo? Pareceu-me ouro sobre azul. Tomo três. Faço um chá e molho duas bolachas. Estas amígdalas do demónio quase me matavam nesse momento. Não morro do estado cadavérico, morro asfixiada com duas bolachas. Definitivamente, ainda não arrisco comer mais nada.
Não consigo falar mas consigo escrever. Passo seguinte: enviar email a todas as pessoas com quem trabalho, ainda que as desiluda. Estou doente, preciso de adormecer serenamente, sabendo que ninguém espera nada de mim. Já falei com os filhos, com o namorado, com os responsáveis e companheiros, está tudo sereno e na paz que é possível. Espero dormir até amanhã.
Terminei tudo e rumei ao meu quarto. Deitei-me na cama, com os gatos aninhados em mim. Não dei pelo adormecer. Acordei com uma sensação de tranquilidade mas amorfa ao mesmo tempo. Estava escuro. A casa estava em silêncio. Fiquei ali deitada muito tempo, feliz por aquele pequeno momento de paz, tão raro. Resisti a ver as horas. Seria madrugada?
No telemóvel, que tinha ficado em silêncio, várias mensagens de retorno às que eu tinha enviado antes da soneca. Só consegui chorar, chorar muito, pelos genuínos abraços recebidos no meio do caos. Cada vez que me permito boicotar-me, ainda que não o grite aos sete ventos, pessoas e momentos extraordinários me lembrarão o que facilmente esqueço de mim própria. Por outro lado, percebo com tristeza, há quem sinta mais de mim do que aquilo que eu sou capaz de verbalizar e sofra horrores, pelo que ouviu no meu silêncio.
Afinal só dormi 5 horas. Três comprimidinhos mágicos e cinco parcas horas de sono, não é possível… Como invejo quem dorme doze horas seguidas… estava prestes a dar-me um “ataque de caspa” quando me dei conta da magia daquelas cinco horas: o mundo não tinha colapsado porque eu tinha ousado dizer que estava cansada e sem força; tinha recebido carinho e energia positiva de pessoas a quem eu pensava ter desapontado; descobri que alma gémea é alguém que sente, até aquilo que tentamos calar em nós; os filhos estavam cá e não me odiavam; os meus amigos de quatro patas continuavam a olhar para mim como se eu fosse o ser mais fofo do universo; o trabalho e as contas, lamentavelmente, não tinham fugido mas não eram o “fim do mundo”. Mas eu, eu também cá estava. Não dormi tudo que precisava mas dormi o suficiente para me sentir cá. Estou cá. Não me sinto bem, não pareço bem. Não sei ainda muito bem o que vem pela frente mas sei que, neste preciso instante, preciso de abrandar o passo. Preciso de saúde, de repouso, de me ver livre de todos estes químicos, antes de redefinir estratégias.
Preciso, sobretudo, de me despir deste medo aterrador de não ser capaz. Não luto contra o mundo, luto contra mim própria e contra este cansaço que me devora a vontade e a audácia. O mundo não tem feito mais que abrir-me os braços, em plenitude, com tudo a que tenho direito: bom e menos bom. Nem sempre estou preparada para me deixar abraçar. Nem sempre lembro a dádiva da vida ou deixo fluir a minha alegria, na transcendência do quotidiano. Não dou ouvidos aos sinais que me vão dando nota desse cansaço e sou finalmente parada à força, porque me esqueço de reivindicar esse tempo antes de sucumbir. O que faço a mim própria, não percebendo que às vezes é demais, que às vezes é preciso mesmo abrandar, que às vezes é humanamente impossível, o que faço então? Continuo a andar, arranjando mil estratagemas, mil formas de fazer tudo funcionar, acreditando que não posso parar, que não devo, que não sei como. Digo a mim própria que, custe o que custar, não me posso dar ao luxo de parar. Que será mil vezes pior o que me esperará depois desse hiato. Digo a mim própria, “limpa as lágrimas e mexe-te, mas que merda é esta? Lá tens tempo de parar, ´tás tolinha? Descansas depois, sim depois, há de haver um “depois”. E este discurso vai ganhando terreno dentro de mim, dia após dia, debilitando o meu estado anímico, num registo cada vez mais distante da pessoa feliz que, normalmente, aqui habita. Tristemente o digo: esta minha cabecinha consegue ser a minha melhor amiga e a minha pior inimiga, sempre que eu o permitir. Ninguém, alguma vez, me poderá fazer tanto mal como eu poderei fazer a mim própria. Cada um de nós tem esse poder. Cada um de nós pode fazer essa escolha. Ou não.
Eu quero escolher a paz, a alegria, os sorrisos e os abraços, os sonhos que se concretizam, as lembranças de tantas coisas superáveis; mas enquanto não tenho capacidade para o sentir de novo em cada uma das minhas células, preciso que me deixem descansar e acreditar que o mundo irá receber- me de volta, quando eu estiver bem. É só isso.
E agora, já posso dormir tranquila e calar a peçonhenta?
Alexandra Vaz