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Era uma vez um cão, que nasceu de sua mãe, mas ainda pequeno foi levado para uma casa de seres humanos, que o acolheram como novo elemento da sua família. O cão cresceu no seio desse lar e logo se apercebeu das diferenças que existiam entre si e seus cuidadores. Desde as diferenças físicas, até a maneira de se comunicar, de fazer as coisas, dos gostos e até aquilo a que davam valor. Via que, por exemplo, os seus donos gostavam muito das coisas que possuíam, enquanto ele, adorava aqueles momentos em que lhe afagavam a cabeça, rebolava na relva, e corriam consigo na praia. Embora diferentes, o cão sentia que fazia parte, a seu modo, daquela família. E gostava deles, apesar das diferenças.

O cão foi ensinado que ele era diferente dos outros animais. E ele sabia-o. Era diferente. Ele não era um gato, como a gata da vizinha. Nem um coelho, como o da prima. Nem mesmo um pássaro, como o papagaio do avô. Era um cão. Com necessidades diferentes. E com instintos diferentes. Foi ensinado que o cão caçava gatos e coelhos. E que os gatos, por exemplo, caçavam pássaros. Era assim desde o início dos tempos. Por isso, cada um devia estar no seu canto. Cada um tinha a sua raça. Porque era essa raça que os fazia diferentes. Eram espécies diferentes. Logo, haviam de ter maneiras diferentes de estar e nunca seriam amigos, porque a sua natureza diria o contrário.

Certo dia, a vizinha da sua família humana adoeceu. Foi para o hospital. A vizinha, era uma senhora idosa que nunca tinha tido filhos e tinha uma gata já há bastantes anos, que viera substituir a sua solidão. Mas a gata não podia ir para o hospital com a idosa. Sem familiares próximos, a vizinha pediu à família do cão que ficasse uns tempos com a sua gata, até ela recuperar. A família ficou um pouco nervosa porque tinha medo que o cão e a gata da vizinha não se dessem bem. Afinal, os cães e os gatos não foram feitos para gostarem uns dos outros. Eles são diferentes. Um é o predador e o outro é a presa. Mas, como tinham pena da idosa, lá aceitaram receber a gata dela em casa.

Quando o cão viu a gata, a sua primeira reacção foi ladrar-lhe. E a gata, por sua vez, eriçou o pelo e pôs as garras de fora. Afinal eles eram de raças diferentes e tinham sido ensinados que não deveriam gostar um do outro. Por isso, era normal comportarem-se assim. A família, ao ver esta reação, achou melhor separá-los. Assim evitaria conflitos. Passaram-se então alguns dias e o sossego reinava na casa. O cão continuava no seu espaço e a gata confinada a um quarto. Porém, um dia, distraídos pela pacificidade da casa, os humanos deixaram a porta do quarto da gata aberta. Ora a gata era muito curiosa, como todos os gatos são. E decidiu explorar a casa dos humanos para se distrair das saudades da sua dona. Ao passar num corredor deu de caras com o cão. Tomou tamanho susto que subiu pelas paredes. Sempre ouvira falar que todos os cães eram maus. O cão, que também não esperava este encontro, assustou-se com a agilidade da gata e começou a ladrar, o que chamou a atenção dos humanos. Eles correram e deram com a gata em cima de um dos móveis e o cão a ladrar em baixo do mesmo. Foi então que os humanos decidiram que tinham de fazer alguma coisa. Assim, disseram ao cão que não podia fazer mal à gata e pegaram na gata e disseram-lhe para não ter medo do cão. A partir desse dia nem o cão nem a gata, de cada vez que se viam, faziam qualquer coisa. Ficavam apenas a olhar um para o outro como se estivessem a observar cada movimento. Ainda sentiam um nervosismo mas não se atacavam.

Mais dias passaram, e o cão sentado aos pés da sua família, observava a gata nos seus movimentos felinos, tão diferentes dos seus. Ela passava muito tempo a olhar pela janela, talvez com saudades da dona. Mas o que o cão achava mais curioso era a capacidade da gata de fazer malabarismo. Conseguia andar nos sítios mais estreitos e nunca se magoava quando saltava de sítios altos. Ele nunca seria capaz daquilo. A gata, por sua vez, quando estava na janela a ver os carros passarem lá fora, olhava muitas vezes de esguelha para o cão e via-o sempre deitado aos pés da sua família. Via como as crianças da família lhe puxavam o rabo, saltavam para cima dele, lhe mexiam nas orelhas e ele continuava, ali, pacífico e disponível. Admirava a sua tolerância. Se fosse ela, já teria subido pelas paredes.

Pouco a pouco, quer o cão quer a gata, começaram a descobrir mais coisas um do outro. E, afinal, todas aquelas histórias que se contavam acerca dos cães e gatos não eram assim tão verdadeiras. Claro que eram seres diferentes, mas não eram assim maus como contavam. Quer um quer outro pensavam como seria ser cão ou gato por um dia, respetivamente. Secretamente, até gostariam de ter as capacidades um do outro. Aos poucos foram percebendo, que, afinal, já não tinham razões para desconfiarem um do outro.

Assim, passaram a reunir-se junto dos humanos no sofá e lá ficavam juntos, pacíficos, a ver televisão.

Certo dia, antes da gata regressar a sua casa, estavam os dois a ver as notícias e a ouvir os humanos, quando um deles diz: Aqueles homens são mesmo racistas! Os dois ficaram atentos à palavra racista. Comentaram um para o outro:

Devem ser como nós, há uns tempos atrás! Racistas que éramos! Eu defendia a minha raça felina, dizia a gata, e tu, a tua canina! Qual será a raça que aqueles humanos da televisão não gostarão? Perguntou o cão. De repente ouviram os humanos lá da casa comentar: Já viste o que eles disseram e fizeram àquelas pessoas, só por causa da cor da pele? A gata e o cão entreolharam-se admirados! Pessoas?! Exclamaram ao mesmo tempo! Mas eles não são todos humanos? Ficou surpresa a gata. Pensava que estavam a falar de espécies diferentes, mas afinal falam da mesma raça! O cão, admirado também, exclamou: imagina que eu não me dava bem com os meus amigos cães, só porque uns têm o pelo claro, outros curto, outros preto, e tantas outras formas diferentes que temos! E, soltou um riso ao pensar o quão estúpidos os humanos podiam ser! A gata olhou para ele e disse: pelo menos tivemos sorte de sermos acolhidos pelos nossos donos, que embora humanos, nos acolheram a nós, tão diferentes deles, como família!

 

Cecília Pinto

 

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