Foto: Nostalgia – Marko Lovric
“...
Senhora Saudade,
não sei por que encanto
me trazes espinhos
e eu te quero tanto!
Senhora Saudade
se o teu manto santo
servisse ao meu corpo,
não teria espanto...
...”
Senhora Saudade; T. T.
Ela vem sempre cheia de dores – às vezes grandes, graves, mortais; outras vezes, apenas pequenos achaques, pequenas febres, pequenas cismas. Mas volta sempre, isso é certo como o bater do nosso coração. Entra-nos de mansinho pela porta dentro, alquebrada e triste, vestida de cor indefinida, assim numa espécie de tom órfão de luz, ou viúvo de cor. Nunca se sabe bem... depende da maleita que a traz. Mas sei que não é preto, o seu manto. Tenho a certeza – a ilusória negrura que lhe atribuímos, na minha opinião, é devida ao mero facto de que ela, normalmente, nos aparece assim de repente, recortada no umbral da porta e nós a vemos em contraluz, do lado de dentro da vida onde nos calha morar, ou do tugúrio onde nos restou esconder.
Ela entra, fecha a porta atrás dela, abraça-nos como se nós fossemos a sua salvação (que ironia!...) e deixa-se ficar, invade cada cantinho da casa, paga, religiosamente, o tributo à penumbra que nos cerca e planta as suas próprias raízes no nosso coração. Ora é doce, ora é cruel. Ora nos prende com os seus braços asfixiantes, ora nos afasta dela, para que não nos pegue as suas maleitas. Ora nos beija em delírio ardente, contaminando a nossa pele com as chagas dos seus lábios, ora nos sopra as feridas vivas.
E as suas raízes vão crescendo, crescendo, dentro de nós. O nosso coração torna-se terra arável, fértil. Crescem dentro dele árvores, que nos servirão de sombra, e cujos frutos servirão de alimento à nossa alma. E cujos ramos servirão para construir todas as cruzes que carregarmos, ao longo do nosso percurso, as grandes, as pequenas, as assim-assim – mas todas elas necessárias, indeclináveis, para que cumpramos a nossa via-sacra e para que possamos pendurar as nossas memórias, como flores renascidas a cada estação de esperança.
Os nossos olhos, entretanto, habituar-se-ão à penumbra que ela trouxe consigo, nas dobras das suas vestes de melancolia e já não a verão tão negra. As nossas mãos já lhe irão identificando as feições e os nossos ouvidos aprenderão a reconhecer os seus passos arrastados. O seu toque já nos será brando e doce, e a sua presença, prova de amor e promessa de serenidade. E entenderemos que somos ditosos por tê-la ao nosso lado, sempre, ajudando-nos a erguer todas as cruzes, mesmo aquela que lhe indicou o caminho para a casa lúgubre onde nos refugiamos, quando ela nos encontrou e entrou, sem bater, sem esperar que lhe abríssemos a porta. Entenderemos, sobretudo, que em algum ponto do nosso caminho fomos felizes – porque só se já tivermos sido felizes, nos calhará por companheira a Saudade. Para sempre, se a felicidade foi grande e a Dor maior. Ou até que a paisagem nos distraia, se a estação de rosas foi passageira e a continuação da viagem dispensar a sua sombra triste como companhia.
Num e noutro caso e em todos os incontáveis casos de permeio, a Saudade velará, atenta e pronta a coabitar connosco visceralmente, amando-nos na solidão e cuidando-nos na dor, com a ajuda do Tempo e da Serenidade. A nós, resta-nos amá-la e respeitá-la. Como se respeitássemos todas as árvores que nos crescem por dentro – e tudo o que elas nos dão, sem ruído nem lágrimas: sombra, flores, frutos, ar... As nossas cruzes, sim, também as nossas cruzes. Ah!... e ninhos. Esperança. E a seiva de que são feitos todos os sonhos.
Teresa Teixeira