Não me lembro das circunstâncias do teu nascimento. Tudo o que sei, dos teus primeiros tempos de vida, foi-me dado pelas lembranças dos outros repetidas até à exaustão, pelas fotos e pelos cheiros que lembro, sem saber porquê. Só mais tarde reconheço memórias conscientes, a partir de um dia amargo que a memória guardou, e que todas as minhas defesas tentaram apagar em mim, ad eternum. No entanto, não esqueci. Aquilo que parece fácil, tem levado décadas a por em prática. Construí e desmontei. Neguei e finalmente, aceitei. Como aceitei muitas outras memórias que se seguiram.
Menina traquina e faladora, que teimavas em sorrir ao mundo, apesar do terror ter vivido contigo anos a fio; gosto tanto de sentir, visceralmente, o quanto eras feliz! Se não fosses tu e essa tua obstinação, eu não estaria aqui hoje, a viver sem entender muito bem como, nem porquê, apesar de tanto ainda doer da jornada. Hoje sei que essa luta também foi a tua, desde o primeiro instante. E tu resististe, para me deixares o melhor de ti. Estar-te-ei grata, até ao fim dos meus dias, por te teres recusado a desistir. Uma e outra vez. E mais outra. E outras mais. Demasiadas para que as conte com justiça. Todavia, há momentos em que me sentiria envergonhada se pudesses perceber a desistência no meu olhar. Nos meus dias mais cinzentos esqueço o que te levou a vencer os gigantes e sucumbo às formigas que me beliscam. Quanto mais mergulho no abismo, mais te odeio por nunca teres tido coragem de tomar uma atitude digna e poupares-me a mim deste azedume que rouba, gota a gota, de dentro da minha alma, todas as cores do arco-íris. Porque não percebeste logo que isto ia ser, toda a santa vida, uma novela mexicana? Porque me deixaste a mim essa responsabilidade? Como fizeste para escapar do veredito estatístico? E se um dia tudo isto for demasiado para mim, serás capaz de me perdoar se eu não tiver a tua força?
Não fiques triste, hoje não te odeio. Escuta com o coração: hoje, e na grande maioria dos meus dias, não te odeio. Hoje, e nesses dias todos também, sei que léxico algum será suficiente para agradecer todas as raízes que, carinhosamente, plantaste em mim. Por isso hoje, e porque tenho medo que não o saibas, agradeço-te a perseverança, a capacidade de amar e abraçar que me ensinaste, o arco-íris que afinal nunca de mim saiu - e que só eu não vejo, quando sucumbo à dor do post-scriptum. Sei que há muitas outras coisas, verdadeiramente mágicas, que preferias que eu lembrasse; em vez de cenas apocalípticas, cheias de efeitos especiais, que a minha insana memória consegue materializar. Eu sei, menina doce… Mas ainda que às vezes eu te pareça à deriva e isso te entristeça, lembra-te que dentro de mim, permaneces viva. Manténs-me viva. Dás sentido a todos os meus matizes, a todos os sorrisos que partilho, a todos os abraços que brotam da alma, a todas as histórias que eu conto, a todos os momentos em que danço e te sinto em mim, aos pulinhos de alegria, por coisa nenhuma. Não penso que nenhum dia nos vá sobrar no crepúsculo da vida, por mais que te ame genuinamente. Não haverá um encore do nosso último suspiro. Mas espero abraçar-te, na derradeira etapa da nossa jornada e escrever, com mão segura e a alma plena, a última página da nossa história. Nela, vejo-nos deitadas na areia, de mãos entrelaçadas e o coração tranquilo, a ouvir as ondas a bater nas rochas e a contemplar as estrelas. Tu, muito jovem e apaixonada, e eu, muito velhinha e deliciosamente feliz, na absoluta harmonia do Ser e do Sentir. Sem princípio e sem fim.
Alexandra Vaz