Aos 28 anos tinha a cabeça cheia de sonhos. A viver uma relação profundamente feliz, com uma vida perfeitamente estável, pensar no passo seguinte foi algo que surgiu de forma natural, como consolidação de uma família de dois a querer crescer. Com a tranquilidade que nos caracteriza em todos os momentos, entrámos nesta fase da nossa vida, achávamos nós, preparados para tudo. Dois anos, muitos testes de gravidez, alguns atrasos menstruais (que apenas chegaram para nos criar uma nuvem de esperança que fácil e dolorosamente se desvanecia) e uma cirurgia simples para tirar uns pólipos do endométrio, depois inscrevemo-nos no serviço de fertilidade de um hospital público. E na primeira consulta ouço pela primeira vez a palavra endometriose. Apenas nove meses depois da suposta cirurgia simples e da boca de uma médica que, não obstante o diagnóstico correto, o desvalorizou e me enviou para um outro hospital, afirmando que teria que ser operada, mas que a operação era complicada e arriscada porque poderia comprometer o meu intestino. Nem menos, nem mais. No outro hospital, nem uma ecografia, nem um exame, nem uma medida foi tomada, nem mesmo quando fui parar às urgências com a sensação de que todos os meus órgãos pélvicos se contorciam dentro de mim. Confirmaram a endometriose como quem me diz que tenho que aprender a viver com a mesma, porque não iriam fazer nada, como se não houvesse nada a fazer. E eu piorava a cada dia. As dores e hemorragias que, desde sempre me tiravam a força, a energia, a capacidade de viver um dia a dia normal e que me roubavam o sorriso, estavam cada vez mais insuportavelmente fortes. Primeiro eram normais, tinha que as suportar, faziam parte de ser mulher. Depois passaram a ser consequência dos pólipos e com a cirurgia tudo ficaria bem. Afinal era bem mais do que isso, mas ninguém quis parar para explicar.
Aprendi quase tudo o que hoje sei sobre endometriose nos fóruns da Internet, nos grupos de mulheres que sofrem do mesmo e nos longos e complexos textos científicos que li. E só aí percebi que tudo o que sempre aceitei como sendo normal: as dores incapacitantes que me obrigavam a largas noites acordada, tão cheia de analgésicos como de lágrimas teimosas, os fluxos anormais que me impediam de sair de casa, de me levantar, de reagir, a dismenorreia, a dispareunia, o cansaço físico, contrário à minha cabeça sempre a mil… era tudo, menos normal. A sociedade formata-nos de tal forma que não nos apercebemos do perigo iminente em que vivemos. Deixamo-nos ir, tomamos comprimidos e rezamos copiosamente para que passe o mais rapidamente possível. E deixamos que os tentáculos da doença cresçam impiedosamente e nos roubem a esperança, a alegria, o sorriso e tanto, tanto mais.
Andei dois anos sem que nada fosse feito, até ter ido parar às mãos experientes de um médico que conhece a doença e os seus perigos. “Tem um tumor grave, tem que ser operada o quanto antes”, disse-me, num afago de voz e de mão doce que me apertou o queixo. “Esta menina sofre de dores que ninguém imagina”, disse para o meu marido. E logo ali uma lágrima teimosa rolou. Não pelo diagnóstico, não por finalmente ter encontrado um médico que sabia o que fazer, mas por alguém, finalmente, valorizar o que eu estava a sentir e a viver e afirmar que não era “frescura minha”. Não era normal ter dores insuportáveis ou hemorragias descontroladas. Felizmente os dois anos de corredores de hospital sem que nada fosse feito não comprometeram nenhum dos meus órgãos e, consequentemente, a minha qualidade de vida. Depois, uma cirurgia complicada, uma recuperação longa, dolorosa e difícil: seis meses de cuidados, de alertas e de proibições médicas, seguidas à risca por quem queria lutar com todas as forças.
Desde então e chegada aos 35, já lá vão duas cirurgias por conta desta doença que aparece sem se fazer notar, que lenta mas insistentemente vai tomando conta de nós e que se agarra como cola onde pode. Já lá vão, também, três tratamentos de fertilidade sem sucesso. A cada um deles, o ovário esquerdo teimosamente colado ao útero é de acesso quase impossível. Culpa da endometriose. Já lá vão muitas e muitas caixas de analgésicos e de pílulas. Muitas lágrimas, muitas noites mal dormidas. Mas conheço a doença. Identifico-a à légua. Sei o que fazer e como fazer e sou muito bem seguida por uma médica fantástica, ao nível da endometriose. E mesmo quando a cada tratamento de fertilidade me dizem que o meu corpo deveria reagir melhor, que deveria produzir mais, que fui “miserável” (sim, já o ouvi da boca de uma médica que me acompanha na fertilidade) eu reforço que, considerando a doença, acho que o meu corpo se tem portado maravilhosamente bem. Estou inteira, cheia de fé e de sonhos ainda, como quando aos 28 tomei a decisão de alargar a família.
Hoje posso dizer que não aprendi a sobreviver com a endometriose. Isso jamais seria suficiente para mim. Não me subjugo a algo sem tentar libertar-me das suas amarras. Vivo alerta, mas aprendi a viver. Venço cada etapa desta doença que poderá impedir-me de ser mãe biológica, que poderá levar-me novamente a um quarto de hospital já tão conhecido, que me fará sentir os mesmos receios de sempre, mas que não me roubará o sorriso, nem a vontade de continuar a ser feliz.
Bárbara Alves Vieira
Artigo publicado no âmbito do Acordo de Cooperação entre o blogue Mil Razões… e a MulherEndo.