Foto: Grandpa - Rita
Recordo-o frágil, de magreza escondida pelas abastadas calças de bombazine de cor verde-terra. Pose aprumada a contrastar com o andar oscilante, jeito do vício que lhe ficou para se movimentar sem a ajuda dos músculos, que há muito não tinha, e dos ossos que já não eram confiáveis. Via-o chegar assim, das suas deambulações pelos campos. Corria para ele, abrandava o passo com a proximidade, afastava-me depois de ter sentido os seus dedos ossudos afagarem-me os cabelos.
Recordo-o calvo. A cabeça nua, resguardada do sol e da chuva pelo chapéu de feltro castanho do qual se separava apenas quando entrava em casa. Estava marcada, por anos de uso do chapéu, com uma linha continua da testa à nuca, de onde espreitavam algumas cãs resistentes à queda. Eram poucas. Estavam ali para lembrar o trabalho do tempo numa farta cabeleira. O tempo nele, fez das dele. Deixou-lhe, caprichosamente, dois enormes incisivos dos quais se servia para mastigar, com esforço, diga-se. Não era homem de muito sustento e mais depressa do que mastigava, livrava-se da comida repartindo-a pelos netos que cirandavam por perto na hora da refeição. Foi nesta repartição de alimentos que aprendi a gostar de vegetais, grelos em particular. Vindos dele, não me amargavam, tinham o tempero adocicado do carinho. Que bem que me sabiam!
O tempo trabalhou-o. Redesenhou-lhe, com rugas vincadas, a cara, o pescoço, as mãos e toda a fisionomia, só não lhe arrancou o brilho no fundo acinzentado onde pousavam duas pupilas vivas, desde sempre habituadas a ver até ao mais profundo da essência humana. Conhecia as pessoas que o rodeavam. Sabia-lhe os defeitos e as necessidades e respondia-lhes com honestidade. Não desvalorizava a palavra com discursos balofos, era até de modestas falas, mas era homem de palavra. As pessoas sabiam-no e usavam-no. Naquele tempo, o tempo em que quase nada obrigava a outras formalidades para além do testemunhal, pediam-lhe mediação nos conflitos e testemunhos nas negociações. Nunca tal prática lhe rendeu mais do que a satisfação de fazer a coisa certa. O sustento que punha na mesa era o produto modesto do trabalho honesto, arrancado da terra com a ajuda da mulher e dos filhos – refiro estes em nome da verdade - e nunca de trabalhos prestados à comunidade.
Bondade, justiça e honestidade nem sempre estão juntas, mas para ele, que não sabia defini-las por palavras, umas arrastavam as outras. Aos pobres e pedintes fazia-lhes justiça sentando-os à mesa e repartindo com eles o que havia para comer. Aos sem abrigo não faltava um telhado onde pudessem abrigar-se das intempéries. Sem alarido, com discrição, caraterística sua, o dia a dia era uma escola onde aprendíamos as boas práticas morais e de convivência.
Aprendi com ele que ser honesto compensava e que se as pessoas soubessem como era compensador, experimentariam sê-lo, ainda que fosse pelo egoísmo de se sentirem compensadas.
Num dia 16 de março, de um ano, há muitos anos, deixou-nos. Mas, passado meio século da sua partida, o meu avô ainda é referência para a pequena comunidade em que viveu e em especial para a família, por isso, ser honesto é mesmo compensador e eu tenho que lembrá-lo quando me pedem para falar de honestidade.
Cidália Carvalho