Foto: Man - Silvia & Frank
… “Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos. Decrete-se a lei marcial com todas as suas consequências
O perigo justifica-o” …
Terá sido a esta altura que fiquei presa ao ecrã da televisão. O apelo, com carácter de urgência, despertou-me curiosidade, mas também inquietação.
As imagens, a preto e branco, mostravam um homem e uma mulher que corriam assustados, perdidos por ruas estreitas e vazias. Não percebia porque fugiam e de quem se escondiam, na verdade, eu nada percebia do que via na televisão, mas sentia-me arrebatada. Era a hora do jantar, o bulício do restaurante e o ruído inarmónico de talheres e pratos abafavam a voz que lia o comunicado de carácter urgente.
Inesperadamente, a sala silenciou-se. Não foi combinado e tão pouco intencional, foi um daqueles momentos em que ninguém tem nada para dizer e o silêncio cai. Pareceram uma eternidade, no entanto, quão breves e curtos foram esses segundos que nem chegaram para ouvir a razão da urgência na captura daquele casal em fuga! Mas o caso devia ser muito grave porque ainda pude ouvir na caixinha mágica:
… “Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais
a inviolabilidade do domicílio a habeas corpus o sigilo da
correspondência” …
O silêncio incomoda e é urgente preenchê-lo. Recomeçaram as conversas ao estilo rococó que é o mesmo que dizer, conversas superficiais e desorientadas, sem importância. E risos. Muitos risos, indiferentes ao drama do País e à desgraça do casal em fuga.
A dada altura, a televisão emudeceu e a imagem era um granulado nervoso e acinzentado. Esteve assim até que, como era comum na época, apareceu o aviso:
“Pedimos desculpa por esta interrupção, o programa segue dentro de momentos.”.
A emissão retomou com anúncios publicitários. Sobre o homem e a mulher não deram mais notícias.
Lamentei o imprevisto e enfureci-me contra os desconhecidos que me impediram de seguir a história apaixonada do casal em fuga.
Não estabeleci como urgência descobrir o desenlace dos dois fugitivos, mas por vezes assaltava-me a curiosidade de saber que rumo tomaram. Seriam reais ou ficcionados? Ainda tentei descobrir que programa era aquele e recolher informações sobre a história, mas não encontrei ninguém que soubesse do que eu falava.
Por essa altura, aconteceu o 25 de Abril. Refiro-o, porque com este acontecimento chegaram novidades expressas livremente. A nível das artes então, foi um desabrochar lindo de acompanhar. As livrarias encheram-se de novos autores, as rádios passavam músicas até então desconhecidas, a televisão repunha programas anteriormente censurados. E, foi assim que numa noite, revejo novamente na televisão a história do casal em fuga. As imagens eram de outro ponto da história, mas reconheci-as de imediato. O Mário Viegas lia o comunicado que denunciava porque era tão urgente capturá-los.
… “beijam-se soluçam baixo e enfrentam a hostilidade noturna
É preciso encontrá-los. É indispensável descobri-los
Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater
É possível que cantem
Mas defendam-se de entender a sua voz. Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de
lágrimas” …
Só consegui entregar-me à paixão das palavras ditas quando venci a surpresa e o espanto do reencontro. Não ouvi desde o início, mas tinha decorrido tanto tempo desde a primeira vez que tomei conhecimento daquela história, que não podiam estar a falar de um facto real, mas dum belíssimo texto ficcionado. Precisava de anotar o nome do autor e o título da obra, era imperioso adquirir o livro, tinha urgência em saber como começava e acabava a história dos dois amantes. Mas quê, a ficha técnica deve ter passado no início, que eu não vi, e o poema não foi dito até ao fim. Mais uma vez a história me escapou. Seria exagero afirmar que isso condicionou os meus dias seguintes, mas sim, empenhei-me na procura com a única informação que dispunha – um texto lido, na televisão, pelo Mário Viegas, sobre um homem e uma mulher que se amavam. Sem êxito.
Um dia entrei na redação do extinto jornal “O Diário” e vi colado na parede, em papel amarelecido, o extrato de um poema. Reconheci-o, era a “minha” história. Começava com o título e terminava com o nome do autor. Finalmente! Conhecer os personagens que anos antes tanto me intrigaram já não era uma urgência, mas uma emergência. Saí direta a uma livraria. O que encontrei, desconcertou-me, naquela como em todas as outras, nos escaparates destacava-se a “Invenção do Amor” do Daniel Filipe. Ainda hoje, passados tantos anos, mantenho por perto esse pequeno livrinho.
… “Prevê-se para breve a captura do casal fugitivo (Mas um grito de esperança inconsequente vem do fundo da noite envolver a cidade au bout du chagrin une fenêtre ouverte une fenêtre eclairée)” …
“Invenção do Amor”; Daniel Filipe
Cidália Carvalho