A Raquel trabalha comigo. É gaiteira, de Cedofeita. Fala em tom agudo, enerva-se em decibéis gritantes. Dos altos. É genuína. E é bonita por isso, só por isso. Só pela verdade. Porque a beleza aos olhos dos outros a Raquel não tem. Não apreciam os sapatos ou o semblante carregado. “Tem ar de zangada.” Dizem-me. É dissidente, bate o pé, levanta-se e chora, faz perder o juízo em quem trabalha com ela. Como certa vez me afirmaram a respeito dela “Sabes como é… Gente frontal: ou se ama ou se odeia…”.
O Pedro não a ama. Não consegue, seja de que maneira for. Não gosta do traço grosseiro dela, da indumentária dela, do trato dela, até das palavras que ela utiliza. Não gosta da transparência porque ele não a tem. Então opta por fazer de Raquel, ela própria, a transparência: não a vê, não lhe fala, desdenha e ignora-a. Como se de um verme se tratasse, nem a um nível do tafetá translúcido o Pedro assume a Raquel: é um fantasma para ele. Um infeliz (e raivoso) encontro numa determinada época profissional. Que é esta e que é implacável. Como o Pedro é com ela.
O assustador da minha história - e o que perturba como espetadora da raça humana – é que o Pedro é encantador. É galanteador. É sedutor. Eloquente. Bem apresentado: fato sem vincos, cabelo aparado. Um político na sua poltrona de couro. Sorriso forçado mas sempre presente. Piada tirada a saca-rolhas, graxa nos sapatos dos superiores. Alguém que me tira do sério verdadeiramente. Que resume uma colega de trabalho a lixo. A nada. Que me diz sem pudor “Ela devia ser uma delinquente no meio onde cresceu.”. Mas que a ela nem palavra. Nem “Bom Dia”, nem “Boa Tarde”. O Pedro é enguia.
Que vai morrer a meio do caminho nesta procura incessante de aniquilar a Raquel, de a resumir a um ser inferior à sua existência, de não aceitar o brilho genuíno e intenso dela. Marginaliza-a com toques de subtileza, de cavalheiro, de senhor.
Uma serpente que morrerá com o seu próprio veneno, um veneno tão comum: a tentativa de resumir os outros a seres ordinários, desestabilizadores e de caráter duvidoso. Mas o Ser Humano é isso mesmo, imbecil. Não se retratando e revendo os atos acredita na punição coletiva a alguém quando, na verdade, o que está a acontecer é que a punição está a cair nos seus próprios ombros. Porque quando nós falamos de alguém, quem nos ouve ficará a saber mais de nós do que propriamente de esse alguém.
E a máxima de que a verdade é como o azeite é tão séria quanto a Raquel. Que luta pelo seu lugar ao sol. E que vai ser dado com a luta que ela própria assumiu desde que entrou: sem filtros e sem luz artificial.
Hoje foi um dia de explosão. De discussão. De ódio exposto no maior exponencial possível onde trabalhamos. Um dia de distúrbios. Um dia que me fez rezar. E esperar, de uma vez por todos, a Mão da Justiça. Que virá brevemente.
Sabemos que o Mundo está com os princípios invertidos mas eu sei que a centelha da vida – seja ela delinquente ou não – é a pedra basilar de todas as coisas.
O resto (os restantes)… É só verniz do verdadeiro delinquente… dissimulado.
Sofia Cruz