20.10.14

 

Ao longo da minha vida, com maior incidência na última década, tenho convivido com crianças de diferentes proveniências, raças, culturas e com as suas respetivas famílias ou figuras de vinculação. Aprecio as suas idiossincrasias, a forma como se organizam enquanto estruturas modeladoras familiares, os hábitos, as histórias de vida. Já me angustiei pela sensação de impotência perante realidades dantescas e pelo consentimento da injustiça calada. Já chorei em total desalinho e descrédito. Já quase perdi a fé na raça humana, mais vezes do que as que gosto de enumerar. Por outro lado, já me senti maravilhada por ter encontrado seres humanos verdadeiramente humanos, em diferentes classes sociais, em diferentes contextos, com diferentes saberes e vivências e, muitas das vezes, de quem nada se esperava. Já chorei, plena de amor e de felicidade, sem palavras suficientes para expressar a minha eterna gratidão pelo que determinados momentos e, sobretudo, pessoas me fizeram sentir.

Em busca de um processo de causa/efeito que atribuísse uma lógica de coerência aos processos que traduzem a vinculação humana, acabei perdida na ausência de um denominador estável comum. Nada garante o amor incondicional. Nada nem coisa nenhuma. Na vida a sério, a bizarria é uma cena do quotidiano: pais “de alma e coração” (nervos, pele, sorrisos e oxigénio), com uma infinita capacidade de amar e de se reinventarem, têm filhos que parecem seres de um planeta inóspito e muito escuro; pais ausentes, violentos, negligentes, envelhecem com filhos que os acalentam e amam, ainda que sem um único gesto de amor no retorno desses afetos. Nesse mesmo universo ser-se um filho “perfeito” (e por perfeito, entenda-se: com todos os órgãos, funções e aptidões que é possível um ser humano ter, numa autonomia progressiva e desejada) não garante que se seja amado por quem, afinal, lhe deu a vida. Crianças que nascem com múltiplos desafios, não raras vezes com uma dependência total e vitalícia, são profundamente amadas por quem, na avaliação contínua desses desafios, as sente como uma bênção e não como um fardo. Estranho mundo este em que nada combina com nada, em que (quase) nada é, inequivocamente, previsível. Estranha vida que para uns funciona como a chapada terapêutica - fechando feridas, encerrando capítulos, sonhando, reinventando a vida; para outros permanece uma velha película a preto e branco, sempre em “looping” -mantendo o tempo num tempo passado que mina insidiosamente o tempo presente, os sonhos e os afetos.

Corremos em busca de ideais, de segurança, de princípios e de regras que nos validem os dias e as intervenções quando, na verdade, tudo isso vale o que vale em face do quão rapidamente a mesa pode virar. Num pestanejar de assustadora lucidez percebo que a minha zona de conforto é a maior das armadilhas. A minha e a de todos os demais. Não controlamos a morte, a doença, os incidentes do quotidiano, os estados de alma daqueles que connosco se cruzam. Não controlamos humores, pensamentos, interpretações. Não controlamos as marés dos oceanos nem tão pouco os ciclones da alma. Não controlamos o impulso do vento ou o desvario da nossa mente. Não garantimos imortalidade própria ou dos que amamos. Fingimos uma guerra psicológica com a morte como se pudéssemos fintá-la apenas com o olhar e ela se esquecesse que existimos. Pois lamento informar os, ainda, sonolentos: não se esquecerá de nenhum de nós.

Abomino os rótulos e as desistências, as críticas de “encher chouriços” e a “caridadezinha” que funciona em causa própria. Não há crime mais hediondo que rotular um ser humano até ele desistir de si próprio, sobretudo “com a melhor das intenções”. Não há “marés cor-de-rosa” em mares revoltos e zangados. Mas somente em mares agitados, e ainda que com muito medo de naufragar, é possível ir além dos limites, desfrutar da onda perfeita e renascer. Não há violinos no ribombar dos trovões da jornada. É preciso, primeiro, silenciar o grito que vem de dentro.

Não há uma receita universalmente mágica na vida - não uma que sirva a todos os seres humanos - mas parece haver um “zilião” delas, validadas por uma riqueza interior que se encontra em todos os povos deste planeta (Amor, Humanidade, Compaixão, Alegria, Altruísmo), expressa em pequenas/grandes coisas do quotidiano, que nos lembra a todo o momento o que é realmente importante. Se há receitas mágicas, existem na alma de cada um de nós, na forma como podemos fazer a diferença nas coisas que estão ao nosso alcance, na força com que acreditamos que mágica é a receita que não pode ser prescrita mas que, quando devidamente administrada, salva vidas. Sobretudo a nossa. Vezes sem conta.

 

Alexandra Vaz

 

 

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