Quem é que disse que o sonho comanda a vida? A vida é que comanda o sonho! Sonhamos na mediada da nossa vida. Doutra forma o sonho seria uma perfeita inutilidade. Ou então é uma questão de fé. E nada contra a fé. Todos temos, cada um ao seu jeito, uma particular forma de crença. Cremos sempre, pelo menos em determinados momentos, que a vida nos irá sorrir um dia, que o cosmos se vai alinhar, seja lá de que forma for, para nos oferecer o céu na terra. O pior é que a crença está muito ligada à distração, ou então à insatisfação, ou ainda a patamares de exigência difíceis de alcançar. Doutra forma perceberíamos que tocamos muitas vezes nesse céu ao longo da vida.
A culpa vem donde? Do sonho, claro. Dessa coisa nebulosa que dizem que comanda a vida. Aprendemos a sonhar na infância, a fantasiar, a idealizar cenários de felicidade, a percebermos a vida adulta como um lugar em que todos os sonhos se concretizam. E depois vai-se a ver, nem sabemos ao certo que sonhos tivemos nem quais os que já se concretizaram. E o pior é que concretizámos a maioria deles e nem nos apercebemos disso, até porque, de grosso modo, procuramos alcançar sempre a felicidade (o sonho mais infantil de todos) e nem nos preocupamos muito com a sua definição.
Por outro lado, sonhar é viver. É viver num mundo paralelo. O sonho é como uma linha que se vai desenhando ao lado da linha da vida real. Estas duas linhas ora se afastam ora se aproximam ora, por sorte ou por feliz alinhamento do cosmos, se tocam. Ou então por atenção e satisfação.
A diferença entre o sonho e a crença é que o primeiro não se apoia em quaisquer dados reais. É fruto da imaginação livre e desprendida de bases terrenas. A crença, por seu lado e por mais estranho que isto possa soar, é material, porque encerra o declarado desejo de concretização em tempo e lugar.
O sonho depende da vontade externa. A crença da interna, da mobilização das capacidades conscientes para concretizar determinado objetivo. Crer que algo vai acontecer é estar perto do acontecimento. A crença é o verdadeiro motor da esperança, e esta é o derradeiro patamar antes da materialização do sonho: sonhar, acreditar, esperançar, mobilizar e concretizar.
"Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce": Fernando Pessoa sempre soube dizer em poucas palavras o que dá muito trabalho. Para a obra nascer é preciso muita sorte, o que também dá muito trabalho.
Mas no fundo isto acaba por ser uma pescadinha de rabo na boca, na medida em que até o sonho se vai baseando nas concretizações: "se cheguei até aqui, posso agora tentar chegar até ali". "Se juntei este pecúlio, posso agora tentar juntar mais outro tanto". E por aí adiante.
O que quer dizer que vamos concretizando sonhos e, quase de seguida, substituímo-los por outros, o que torna a tarefa de sonhar numa dança de cadeiras. E esta dança só serve para preencher o espaço entre o nascimento e a morte. Sim, porque vamos todos para o mesmo e aí os sonhos serão mais sobre o passado do que sobre o futuro.
O sonho comanda a vida, sim: se é verdade que a vida condiciona o sonho, não é menos verdade que o sonho descondiciona a vida.
Joel Cunha