Numa manhã de nevoeiro José saiu à rua e viu tudo mais claro do que nunca. Quando acordou nesse dia, vestiu-se ao acaso, mexeu-se mecanicamente, abriu a janela sem ver nada nem ninguém. A mesma rotina dos últimos dois anos. Fechou a porta sem saber para onde ir, sem vontade de chegar a nenhum destino. A quietude que parecia anteceder o grito não o deixava respirar. Sentia-se num crescendo lento e doloroso. Já tinha partilhado, com um ou outro amigo, esse seu estado de alma que o trazia cada vez mais apático e desistente. A crise, a crise, e só se falava da crise. José pensava “também eu estou em crise…”. “Não Zé, não é essa crise, a da tua cabeça… É a crise a sério: a da falta de pilim, de trabalho, de dignidade. Depressão, que é isso? Tanta coisa séria a acontecer e tu empancas no caraças da depressão? Sai lá disso, Zé, e deixa-te de lamúrias.” Ah, essa crise, afinal, é que é crise, pensou. O resto são amendoins de segunda. Como raio se enfrenta uma crise sem cabeça? Como raio descuramos a saúde mental em prol do vil metal? Ouvia constantemente: “Quem trabalhará por mim se eu adoecer? Quem me pagará as contas, quem alimentará os meus filhos se eu ficar chalupa? “ José conclui que, pelo menos em Portugal, a saúde mental anda pela horinha da morte. Tal e qual. Um tipo pode ter amantes, pode protagonizar cenas de pancadaria, pode entregar a casa ao banco quando já não a consegue pagar, pode fazer mil e uma asneiras. Pode queixar-se continuamente da crise, da corrupção, da atitude passiva de uma nação. Pode cuspir para o chão, coçar as partes despudoradamente como se vivesse sozinho no mundo, pode vociferar, partir uma perna, ter uma cãibra violenta, uma infeção qualquer. Tudo. Um tipo pode fazer quase tudo. Pode ser tudo menos depressivo e frágil. É “mariquinhas”, é “isso não é cena de gajo”, é “abichanado”, é tanta coisa que José deixou de se queixar. Passou a guardar para si o sofrimento, até este já não lhe caber dentro do peito. Pediu ajuda, procurou consulta médica. Nas horas que passou à espera, só para essa marcação, imaginou mil maneiras de se matar, com requintes de malvadez. Quanto mais pensava nisso mais certa a ideia lhe parecia. Nada, absolutamente nada, jogava a seu favor: marcação de consulta no público com semanas de tempo de espera, consultas no privado pelas quais lhe pediam couro e cabelo, sentia-se no epicentro de uma crise de meia-idade, havia perdido a companheira de uma vida inteira. Estava vazio. Perdido. Tão oco que um simples gemido o fazia saltar da cadeira. Em tempos, havia genuinamente gostado das pessoas. Achava-as mais humanas, mais presentes. Tinha vivido rodeado de gente até ao dia em que se atreveu a dizer que se sentia deprimido. Desse dia em diante, a maior parte das pessoas havia partido, fechadas no mutismo de quem não entende, embotando sentimentos e afetos. Partiram. Da noite para o dia. Falar em depressão, atualmente, parece surtir o efeito da lepra na idade média: quem não morre, põe-se a milhas. José deambula ao acaso, esperando que o sol dissipe a nuvem que com ele caminha. Quando encontra o rosto de alguém, poucos olhares lhe são devolvidos. As pessoas não se olham, não se tocam. Uma ervilha a menos no mundo não faz sequer mossa, pensou. Nessa manhã de nevoeiro sentiu o sol dissipar a nuvem. Pela primeira vez em muito tempo não lhe custou inspirar. Fechou os olhos, sorriu e abriu os braços ao mundo. Não podia haver dia mais bonito para respirar pela última vez.
Alexandra Vaz