Ainda ontem se encontrava sentado, tentando durante horas não deixar o corpo agitar-se em espasmos que refletiam a imposição do frio ao seu físico. O Porto apresentava-se cinzento e assim foi escurecendo, acompanhando a conversa que mantinham. Desta vez, o alerta amarelo não se traduzia em previsível tormenta ou tempestade. Apenas em frio e frieza. Chegou a noite, desfasada da sua própria perceção do tempo e aí o corpo cedeu mesmo à inevitabilidade da convulsão. Por esta altura já não lhe interessava se este sinal de vulnerabilidade não encontrava companhia no rosto fechado com que tentava transmitir convicção. Tentou expressar a mesma, através das palavras com que iniciou o discurso, apresentando a sua versão dos factos e dos sentimentos. Tentou expressar a mesma, através do olhar e da pressão que as mandíbulas exerciam uma contra a outra, desfigurando o seu rosto e o sorriso que ela tanto aprecia, quando calado observou as lágrimas que dos olhos dela começaram a surgir. E assim ficou. Resistiu, estoicamente considerou ele, face ao que de si conhecia e ao que teria permitido ouvir sem retorquir em situações passadas, aos relatos pormenorizados das suas falhas e omissões. O seu ego ia sofrendo, de assalto em assalto, encostado às cordas sem conseguir de lá sair. De vez em quando ensaiava um uppercut mal metido, que embora tocando no adversário não lhe causava muito dano porque partia já sem convicção. Não porque faltasse força no punho, mas porque um KO significaria o tapete para os dois. E ele nunca, nunca desejou isso. Aturdido, despediu-se com um beijo fugidio, daqueles deliberadamente secos que tentam ocultar o amor que se sente. Num SMS tardio propôs-se em levá-la ao emprego, por motivo de carro avariado, mas mais ainda porque quer que perceba que com ele pode contar. Mesmo depois de um combate brutal. Pela noite desligou-se do mundo e do frio. Percebeu mais tarde que se tinha desligado também do sono durante largos períodos. Acordou anormalmente cedo e tomou conta de si. Saiu com temperatura negativa e à hora marcada estava à porta dela, acontecendo muito rápido um mundo de coisas a partir desse local e do momento em que a viu. Sentiu-se desarmado, de surpresa apanhado com o baque que levou. Os olhos mostraram-lhe um segredo conhecido, o amor profundo de mulher revestido e o futuro à distância do agarrar. Não foi facto novo, mas voltou a ser trespassado pela certeza de que ninguém mais lhe serviria. Eram oito e tal do novo dia quando percebeu que tinha de mudar.
Rui Duarte