André. Era assim que gostava de ser chamado. André soava-lhe a normalidade mas soava-lhe também a alegria. Era um nome alegre, feliz. Achava que ninguém conseguiria chamá-lo de forma triste. Andréééé, gritava ele quando pensava neste mesmo assunto, tentando ocupar os pensamentos. Do seu verdadeiro nome já sobravam só memórias vagas… muito vagas!
André era cozinheiro profissional. Era, antes de ter conhecido o Pedro, o António e João. Os três companheiros de copos. Eram só uns copos, diziam. Era por ser fim de semana, repetiam. Mas com o andar, a vida era já para comemorar todos os dias, e os fins de semana passaram a ser todos os dias e os copos… esses, passaram a ser garrafas. Uma, duas… talvez três ou mais. A vida era para comemorar!
Passaram-se alguns anos nesta comemoração constante. O Pedro, o António e o João deixaram de lhe ligar para sair, as namoradas constantes deixaram de aparecer. O trabalho, esse, ficou também comprometido. Daí até perder a casa na rua principal da cidade, o carro novo e o telemóvel da moda, foram apenas algumas semanas.
André, como gostava de ser chamado, passou a dormir numa esquina de duas montras de uma loja chique da cidade. Uma loja que em tempos também frequentou. Mas as amigas, aquelas de todos os dias, as garrafas continuaram a fazer-lhe companhia e nunca se sentiu sozinho.
Foi na rua que conheceu o Manel. O Manel era um homem que conhecia as ruas como ninguém. Vivia nelas há mais de 15 anos e conhecia os sítios onde se poderia arranjar uns trocos com alguma facilidade. Mas sabia também arranjar comida, um leite quente ou até uns cobertores. Conhecia até onde se arranjava as bebidas quase de borla. Não eram de boa qualidade mas o essencial estava lá e isso era o que mais importava. Foi também com o Manel que André conheceu as freiras e os padres que aos domingos os deixavam tomar banho com a promessa de um dia se afastarem totalmente da bebida. Era uma promessa que os dois faziam com a mesma facilidade com que iam logo depois comprar as garrafas para aquele dia Santo.
André via em Manel um irmão mais velho. Não que ele lhe demonstrasse grande afeto. André pensava até que Manel fazia-o mais por uma solidariedade solitária do que por amizade ou afeto, mas André admirava-o mesmo assim.
Era domingo. O dia corria como todos os domingos desde… André não sabia já desde quando. Tinham ido tomar banho e comer qualquer coisa quente. Depois tinham passado pelas traseiras daquele hipermercado, buscar umas garrafas que tinham chegado em troca de uns favores que tinham feito dias antes. Vodka era o que lhes tinha calhado na sorte. Não esperando por mais nada, até porque não tinham nada porque esperar, abriram duas ainda ali a dois passos. Beberam-nas em menos de nada. O álcool era um desejo, um amor viciante que não conseguiam deixar esperar.
Daquele domingo André não se lembra de mais nada. Na segunda-feira acordou no mesmo lugar de sempre. Ao seu lado quatro garrafas vazias. O Manel, que costumava ser madrugador, ainda estava deitado no lugar de sempre. Estava deitado mas não se levantou mais… Qual Romeu, Manel tinha morrido por um amor. Um amor retorcido, amargo, solitário.
André não queria acreditar no que via e saiu. Saiu desorientado, sem saber se era pelo Manel se pela ressaca da noite anterior. Saiu com passo largo, apressado… Correu sem saber onde seria a meta. Correu várias horas sem que lhe faltasse o folgo. No fim, sentou-se à beira rio e chorou. Chorou, mas tal como de manhã não sabia se pelo Manel, se por si e pela sua vida desperdiçada. Aliás, sabia e isso fazia apenas com que a corrente de lágrimas fosse ainda maior.
Na segunda-feira voltou lá, não àquele lugar onde provavelmente o Manel ainda estaria, mas às freiras. Pela primeira vez dirigia-se ali para se lavar de uma outra forma.
Naquela segunda-feira o André deixou de existir. Entrou numa clínica de desintoxicação e ao fim de 1 ano e meio estava já a trabalhar num dos restaurantes mais badalados da cidade.
Vicente. Agora gosta de se chamar Vicente para se lembrar que se pode sempre vencer.
Cátia Azenha (articulista convidada)