Bom, agora coloco aqui este monte de papel, as esferográficas ali e aquele canto fica para os arquivos. Está impecável. Limpinha. E cheira a novo. Assim dá gosto. Vou mantê-la sempre assim. No dia seguinte, no fim do dia, verifico se está tudo no sítio, desligo o candeeiro e abalo satisfeito. Dois dias depois, no resto da semana, todo o mês, todo o ano, todo o tempo, o mesmo procedimento, a mesma energia, a mesma motivação: deixo sempre a minha secretária imaculadamente asseada. Ao meu mundo mantenho-o assim, arrumado, estável e controlado. Sou feliz assim.
A secretária da minha colega, por seu lado, está arrumada com a delicadeza de uma escavadora. Não sei como é que é possível! Está tudo fora do sítio. Aquela mesa envergonha os piores teatros de guerra. Por vezes nem o computador desliga. O mundo dela é um caos. Ninguém pode ser feliz assim. Ela dantes não era assim. Há muito que não nos falamos. O trabalho não deixa. E eu também não quero. Ela andava a cansar-me lá com as coisas dela.
Ela é uma besta, só pode. Quem é que consegue trabalhar naquelas condições? E aposto que aquelas gavetas estão cheias de tralhas velhas e inúteis. Se bem que raramente as abra. Provavelmente para que eu não sinta o cheiro de uma fatia de pizza por lá esquecida há dias, sei lá. Ou para que eu não veja o resto da anarquia. Ou, o mais certo, não as abre porque não cabe lá mais nada. Ah Ah!
As minhas não: na de cima estão as coisas de uso comum, os clipes, o agrafador e o furador, as minas, os marcadores fluorescentes e as cargas para as esferográficas, claro; na do meio, que é maior, estão as pastas dos documentos urgentes e a correspondência a expedir; na última, a maior de todas, estão as minhas coisas pessoais, postais, fotografias, recordações da minha infância, gentes da minha história, uma bola de golfe autografada, o número do jornal da empresa quando fui o funcionário do mês em 2003, o recibo do jantar com a Isab… Hum… Não! Com a Elsa (aquilo não deu em nada mas comi lagosta), o galhardete da Junta de Freguesia pela participação no torneio de xadrez do ano passado… Eu sei, eu sei: sou um pouco vaidoso.
Agora que penso nisto, talvez espreite as gavetas dela… Deixa-a ir-se embora… Não! É melhor não mexer. Pode notar… Notar o quê? Naquela confusão? É! Ela hoje sai mais cedo e eu vou aproveitar. Aposto que estão cheias de lixo.
Foi-se. É agora. Hum… Deixa cá ver: gaveta de cima… Tal como suspeitei: lixo. Batons, vernizes das unhas (alguns abertos e secos), escova de cabelo, uma almofada de pó-de-arroz esquecida, uns cartões de lojas, uma lima das unhas, coisas de gaja. Deixa ver a segunda: revistas, recortes de vestidos, fotografias de quintas para casamentos, um livro sobre decoração de interiores, outro sobre maternidade e este aqui, eh eh, dicas de autoajuda. Deve ser para a ajudar a arrumar a secretária. Agora estou curioso: o que é que ela terá na terceira? Hum… Está leve. Parece vazia. Está vazia! Vazia? Deixa-me espreitar. Não! Vou abri-la toda. Que é isto? Uma rosa em cima da fotografia da filha?
Joel Cunha