3.2.11

 

Manuel chegara a casa não havia uma hora. Fora ao hospital saber notícias do seu filho João. Tinha sido avisado pela direcção do estabelecimento prisional: um recluso chegou fogo à sua cela – incendiou o colchão, talvez numa tentativa de suicídio. Alguns reclusos tiveram de ir ao hospital. Escoriações sem gravidade, algumas queimaduras. O João estava bem, dali a pouco teria alta e voltaria ao estabelecimento prisional.

Mais uma prova para o Manuel, para o seu coração de pai. Nunca imaginou ver o seu filho condenado, preso. Sabe que o João é bom rapaz, mas teve um momento de fraqueza. Há momentos assim, de fraqueza, que estragam a vida a um homem. Uma pessoa tem muitas coisas dentro de si e a fraqueza é uma delas. Qualquer um de nós pode um dia, ter um desses momentos de fraqueza, e ver-se por isso fechado entre quatro paredes, a cumprir uma pena. Mas se isso acontecer, não deixamos de ser pessoas, não passamos a ser diferentes, a ser menos, por causa disso.

Manuel sofre pelo João, cumpre pena com ele, mas em liberdade. Continua a reconhecê-lo como filho, continua a amá-lo. E sabe que um dia a pena do João terminará, que ele recuperará a liberdade e que a vida continuará, que nas prisões, todos os dias, continuarão a entrar e a sair pessoas como o João, como o Manuel, como todos nós.

Manuel sentou-se e procurou colocar a sua atenção noutras coisas, criar alguma distância, descentrar-se um pouco daquele acontecimento que lhe marcou o final da tarde. Começou a ler as notícias na Internet. Lá estava a notícia do incêndio. Leu os comentários que algumas pessoas, anonimamente, foram colocando:

 

“Pena não fazerem serviço comunitário e contribuírem para a despesa que dão ao Estado. E se chegassem à noite cansados de trabalhar, de certo dormiriam em paz. Terapia de trabalho é o que lhes faz falta.”

 

“E que tal uma pena acessória de um mês a dormir no chão de cimento, para ele aprender a valorizar os objectos que colocam à sua disposição, para seu conforto!”

 

“Mais um que come à conta dos contribuintes e ainda não está contente com o hotel. Por mim, para além de levar um enxerto de porrada, ainda ia dormir no cimento até ao final da pena.”

 

“Se fosse eu o guarda prisional poupava dinheiro aos contribuintes portugueses, esquecia-me de passar no corredor por 15 minutinhos e se quando passasse na ala ele ainda estivesse vivo, aproveitava e abafava-o. Era menos um a sair em liberdade.”

 

Manuel ficou com o sangue gelado, pela leitura. Ficou paralisado, em choque pela desumanidade, pelo julgamento ignorante e fácil, pela condenação sumária, pela arrogância daqueles que pensam os outros diferente de si, que se pensam diferentes dos outros, pela estupidez, pela falta de amor e de compaixão. E formulou um desejo, do fundo do seu querer:

- Espero que Deus nunca permita que as pessoas que assim se expressaram, com tamanha frieza, rancor e desumanidade, tenham um momento de fraqueza, que nunca permita que sejam condenadas a uma pena de prisão, para que elas nunca tomem consciência de serem pessoas, para que nunca descubram como são frágeis e fracas, pois nunca conseguiriam sobreviver a tão grande prova.

 

Fernando Couto

 

Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 23:05  Comentar

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