Com passadas rápidas dirige-se para a porta, vai vestindo o casaco, despede-se gritando:
- Até logo!
Da cozinha, a mulher pede-lhe para aguardar um segundo e aparece com um embrulho numa mão e um saco na outra.
- Obrigada querida, ele vai apreciar.
- É apenas um pequeno gesto sem qualquer valor se comparado com o que ele fez por nós. Dá-lhe um abraço e não te esqueças de dizer que tenho pena de não ir, mas com a Matilde doente… Não posso deixá-la sozinha. Dá-lhe saudades da mãe mas não lhe fales dos resultados médicos, não o preocupes ainda mais.
- Sim querida, mais alguma recomendação?
Não há censura na pergunta. Ele, como ela, está muito reconhecido ao António; por mais que façam será sempre nada.
- Olha, fala-lhe do negócio, das encomendas que temos tido e que esperamos ansiosos o dia em que ele ocupará, de novo, o seu lugar na fábrica.
Maldita fábrica, praguejou ele, entre dentes, enquanto batia com a porta da rua. Por ela o seu irmão viu a vida interrompida, aos 20 anos.
O António é o mais novo dos cinco irmãos mas naquela fatídica noite provou que para ser homem não é preciso ter idade mas atitude.
Não era a primeira vez que, noite dentro, vinham do lado da fábrica ruídos estranhos, movimento de camiões. O pai dava o alerta e todos se dirigiam para lá. A chegada tardia apenas constatava mais um roubo. A única maneira de os impedir seria surpreendê-los.
- Malditos! Sempre quero ver a cara desses gatunos quando se depararem com uma comissão de recepção!
Organizaram-se, fizeram turnos, vigiaram noite após noite. Muitas noites. Nada! Os meliantes não apareciam, dir-se-ia avisados. A família ponderava interromper a vigilância.
Foi então que, uma noite, altas horas, ouviram o trabalhar de um camião. Era o sinal que esperavam. A juventude irrequieta do António adianta-se à maturidade do irmão que o acompanha naquele turno. Puxa da arma, encosta-se à coluna junto à porta. O irmão fez-lhe sinal para se acalmar. Não podem cometer erros. Primeiro têm que verificar se é desse camião que estão à espera, se sair da estrada principal e entrar na picada que termina na fábrica, basta acender os holofotes para perceberem que não estão sozinhos. Surpreendidos e assustados fugirão.
O ruído do motor estava cada vez mais próximo, abrandou no entroncamento, virou à direita. Os faróis dirigidos ao portão da fábrica. Parou. As vozes que ouviram indicaram que saíram do camião e se dirigiam para o portão que os separa dos dois irmãos. No interior, António tentou chegar ao interruptor para ligar os holofotes. Estava muito escuro, não via nada, a ligação tardou. O portão abriu-se no mesmo instante em que as luzes se acenderam. Os assaltantes, assustados fugiram. António perseguiu o mais atrasado. Estava quase a alcançá-lo. Agarrou-lhe a camisa. O outro, quando se sentiu preso, virou-se e encostou uma arma à testa de António. O tiro que cortou o silêncio da noite, confundiu-o. Uma arma foi disparada - deveria sangrar em alguma parte do corpo. Mas não, não sentia nada. O corpo que segurava pela camisa escapou-se-lhe, caiu no chão perto de si. De pé e ainda com a arma na mão o seu irmão olhava-os com um misto de terror e alívio. Matou um homem mas o seu jovem irmão está vivo.
Abraçaram-se longamente. Muita coisa passou pela cabeça de António mas a imagem dos seus pequenos sobrinhos a crescerem com o pai ausente, recluso numa prisão, não o abandonava. Como um autómato tirou do bolso o telemóvel, ligou o 112.
- Matei um homem, venham buscar-me.
Aconteceu há cinco anos, a pena ainda não terminou mas António não tem medo do futuro - a família ama-o e admira-o, cuida dele. Hoje é dia de visitas, tem a certeza de poder abraçar um dos seus. A sua cunhada fez o bolo de iogurte que lhe será entregue juntamente com o saco da roupa cuidadosamente limpa e arranjada. Terá notícias de todos.
É assim desde aquela noite.
Cidália Carvalho