Ele costumava chegar a casa do trabalho à hora de jantar, embora o horário de saída fosse às 17 horas. Nesse dia, a hora do jantar passou e, para estranheza da família, ele não chegou... A preocupação surgiu entre todos, mas como o telemóvel ainda não era uma realidade, foram jantando sem ele, sempre na esperança de o ouvir chegar.
Jantaram com calma, arrumaram a cozinha (deixando um prato limpo na mesa e a comida no tacho) e reuniram-se em frente à televisão, como era costume. Tudo isto e ele sem chegar. "Mãe, onde está o pai?", diz a mais nova, estranhando a ausência inesperada, "deve estar a chegar", diz a mãe enquanto se tenta mentalizar de que nada está a acontecer. No entanto, a hora de dormir chega e dele, nada.
Os dois filhos deitaram-se e, com a ajuda das palavras de conforto da mãe, acabaram por adormecer. A mãe, no entanto, preparou-se para uma noite acordada, de vigília, à espera de notícias, de alguma informação, de qualquer coisa que a ajudasse a perceber o que se estava a passar. Em silêncio, passou a noite de janela em janela, com o pensamento a ser bombardeado por um turbilhão de ideias aterrorizadoras.
As horas passaram e o dia nasceu sem que o telefone tenha tocado uma única vez, sem uma única pista ou indicador. Toda a família desesperou... De certeza que aconteceu alguma coisa, mas o quê? Foi feita uma chamada para o trabalho dele, "ele ontem a que horas saiu daí?", pergunta a mãe, "ele ontem não veio trabalhar", respondem do outro lado... "Ele ontem não foi trabalhar", repete a mãe aos dois filhos, “ele ontem não foi trabalhar”... “Temos que o ir procurar”.
Não demorou muito até o filho o encontrar na garagem. Mas já não havia nada a fazer... Restava a tristeza, o desespero e a raiva... A incerteza do amanhã, a escuridão que rapidamente preencheu o dia-a-dia desta família.
Nos anos que se seguiram, completamente bloqueados pelo acontecimento, reviveram os últimos momentos juntos, as últimas frases, a forma como tudo funcionava, antes. E, desse bloqueio, foi-se tornando claro que todos tinham sido avisados. Todos eles recordaram as ameaças feitas ("isto um dia acaba de vez"), os comportamentos estranhos, o mal-estar generalizado e o afastamento da família. Mas nessa altura, já era tarde demais.
Ana Gomes