8.4.10


 


Colocarei o problema de forma simples.


Todos sabem como é fácil e como é difícil viver em sociedade. Todos sabem, ou calculam, como é fácil e como é difícil viver só.


É fácil viver só porque nos teremos libertado dos inúmeros problemas que a convivência nos traz, inevitavelmente.


E é difícil viver só, porque não sabemos viver uns sem os outros (direi, sabiamente à maneira de M. de la Palisse).


Viver em sociedade é fácil - parece que é naturalmente que dependemos uns dos outros no aspecto afectivo e no material. E é difícil pelo mesmo motivo – dependemos uns dos outros se bem que não saibamos viver uns com os outros.


Se fôssemos todos iguais, é provável que não houvesse problemas de coexistência, mas somos tão diferentes que complicamos o nosso relacionamento com dificuldades que muito presumivelmente não merecem que nos ocupemos delas nem que nos preocupemos com elas. Só porque somos diferentes. E porque não aceitamos as diferenças como outras tantas possibilidades, faculdades, poderes.


Gostamos de gozar a nossa liberdade e não queremos saber de fronteiras. Mas não há forma de vivermos uns com os outros em paz e sem fronteiras que limitem a liberdade de cada um. Inventaram-se as regras e as leis para isso que por vezes é penoso – para que não colidamos. Todavia podemos e devemos interagir, nós que habitamos todos o mesmo sítio do universo por muito que o sítio se movimente em rotação e em translação num espaço infinito. E ainda temos desejo de conhecer outros sítios e conviver com habitantes de lugares, para já, desconhecidos.


 


Como proceder então sem conflito?


Considero que no meu mundo há aqueles com quem convivo e que não quero que sejam estrangeiros (a quem tenderei a culpar de todas as faltas), quero conhecê-los bem; e há todos os outros que também são meus vizinhos; há o que acontece à minha volta (e desejo interpretar correctamente); e há o desejo de ausência de sofrimento em mim (o que me permitirá ver com clareza e ajudar os outros a ver). Esquecer-me-ei um pouco de mim própria, bastante, mas aumentarei a minha capacidade de ver mais além e, do mesmo passo, ampliarei o seu, deles, e meu bem-estar.


 


“Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, disse Jesus.


Ensinou pelo exemplo – amorosamente. A sua vida foi coerente com a doutrina que pregou, baseada em mandamentos divinos. A transcendência, acentuaram-na os discípulos.


 


Ouso considerar que a filosofia budista tem um sentido mais prático, mais dia-a-dia e talvez mais possível de conciliar com… Ou melhor usa uma linguagem e um método fácil de adoptar na vida de hoje. (Que me perdoem os seguidores, se não é assim). Um método acessível, digo. Mas, na verdade, há um longo caminho espiritual a percorrer.


 


É uma arte de viver aqui agora e pode ajudar-nos nisto que é fundamental para a nossa existência colectiva: sentirmo-nos bem a interagir com o mundo sob poucas regras e barreiras. Bastante próximos. A sentirmo-nos bem e solidários e interessados no que acontece à nossa roda e mais além.


 


Em face da realidade que temos, precisamos de mudar, sem dúvida. Mudar a visão do mundo, a maneira de estar, a maneira de pensar. Mudaremos primeiramente o jeito de pensar. Compreenderemos o que se passa connosco. Por que agimos de modo egoísta. E por que razão, isso, nos faz sofrer.


Descobriremos as causas do nosso sofrimento e do dos outros e tentaremos suprimi-lo. Dado que a ignorância das razões do sofrimento dos outros nos leva a distorcer a realidade e, ao contrário, o conhecimento das causas nos leva a uma consciência clara do que se passa… interessa-nos saber e fazer uma apreciação justa da realidade.


 


Começo por me interrogar se é a nossa natureza sermos egoístas. Se é a educação que nos leva a querer ser de outro modo e por isso sofremos. Sentimo-nos bem quando praticamos o bem. E sentimo-nos mal quando fazemos sofrer e quando vemos sofrer, é certo.


 


E acontece termos necessidade de ser altruístas por muitas razões inclusivamente económicas. Por outro lado, sabemos ser possível modificar a nossa forma de pensar, treinando a mente. Esse treino pode levar a uma alteração de funcionamento do cérebro, dizem os sábios.


 


Num momento extraordinário como o recente enorme desastre na ilha da Madeira, toda a gente se solidariza e contribui e trabalha para minimizar o sofrimento dos atingidos. As barreiras são abatidas e todos procedem de forma altruísta.


Sabemos que não é uma posição rotineira, comum.


Pensamos então que, se é possível em certas circunstâncias modificar a postura habitual, egoísta, por que não ser generoso mesmo fora de um contexto de cataclismo? É necessário transformar a nossa relação com o sofrimento, nosso e alheio, quero dizer, sermos naturalmente generosos e solidários e empenhados.


 


Uma forma de conseguir a mudança na nossa maneira de pensar é pela meditação tal como a entende a filosofia budista e de que tenho falado com frequência no meu blogue, O fio de Ariadne.


 


Meditar visa substituir a “urgência mental” em que quase sempre nos encontramos por uma paz profunda. E essa paz, que é nossa, tende a expandir-se e a tomar todo o espaço à nossa volta. E a ser passada a outras pessoas, criando um clima propício à clara compreensão dos problemas. Importa-nos esse estado de espírito, sereno, que nos levará à consciência e ao conhecimento.


 


Uma meditação de alguns minutos é a pausa que permite quebrar a cadeia dos pensamentos que provocam agitação interior e se encadeiam uns nos outros sem fim. Naturalmente, sentimo-nos mais livres e abertos nesses momentos. Com certeza, sentimo-nos em paz. E generosos.


A nossa maneira habitual de pensar é transformada, porque do emaranhado confuso que eram os nossos pensamentos antes de os disciplinarmos pela meditação, sentimos essa tentativa de silêncio como uma pacificação. Possivelmente de pronto voltamos à agitação.


 


Contudo, ficámos a saber o que é a paz e a calma interior a que aspiramos; e que nos é possível alcançá-la já que conhecemos as circunstâncias que a provocam. Talvez compreendamos a “verdadeira natureza das coisas”, isto é, o que elas são antes que as “nossas fabricações mentais” se sobreponham e as modifiquem.


 


A importância de disciplinar ou de ordenar os pensamentos, ou antes, a sua escolha (o que mais me seduz) é que, possibilitando que uns me ocupem e eliminando outros, deixo espaço na mente para desenvolver e elaborar ideias curiosas, permitir que elas me conquistem - deixo-me conquistar por elas, e trabalhar (com elas) no sentido da invenção, da descoberta, da realização da obra.


 


O meu desejo é não me deixar dominar por pensamentos que embaraçam a minha vida de forma escusada e inútil. Que se encaracolam e se colam a mim. Esses indesejáveis… devo exclui-los, se aspiro a um conforto. E fico, não apática, mas com espaço que preencho rapidamente com ideias que desejo construtivas se pretendo realizar alguma coisa que tenha importância para a minha vida, e para a vida.


Têm como referência, em geral, análises excessivas de palavras, de gestos, de entonações de outras vozes que quero a todo o custo interpretar à minha maneira. Mas, ao querer decifrá-los, estou muito provavelmente a culpar outros das minhas falhas, e logo sou levada por essa análise equivocada para situações de relacionamento muito delicadas e mesmo dramáticas, sempre infelizes. Para situações de conflito que levam a agressividade e a violência. Que noutra dimensão conduzem à guerra.


Porque as acções que empreendo, sejam quais forem, resultam dos meus pensamentos. E são proveitosas ou nocivas de acordo com esses pensamentos e com o ambiente, tranquilo ou agitado, em que nasceram.


O que significa que a importância de um acontecimento depende da minha atitude perante ele, não tanto do acontecimento em si. É possível que reaja de forma emocional, num primeiro momento mas, se em seguida for capaz de julgar tranquilamente, esmiuçando e diferenciando, encontrarei o ponto de clareza que me vai permitir actuar de forma justa. De maneira nenhuma, ficarei indiferente.


 


Afirmo de novo que a meditação me permite divisar que ideias… arriscarei excluir do meu espírito e as que devo acarinhar. Serenamente.


Continuo sem saber se somos naturalmente egoístas ou naturalmente altruístas – isso deixou de ser importante desde que acredito que é possível alterar a estrutura de pensamento.


Cultivar e desenvolver qualidades que permitam construir uma sociedade menos conflituosa, mais afectuosa, mais culta é realizável.


 


Direi que da abordagem… não ingénua mas confiante, aberta e generosa da humanidade, da realidade, da natureza das coisas… a uma sociedade menos conflituosa, é um passo de lógica ariadneana.


 


Não estou a falar de um sonho com que se ocupam meia dúzia de pessoas de boa vontade, desejosas de perceber e de melhorar o mundo. Sinto que vale a pena e é urgente estudar este pensamento e experimentar as práticas aconselhadas.


 


Zilda Cardoso


(escritora, convidada do MiL RAZõES...)


 

Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 22:05  Comentar

De Vitor Raimundo Martins a 11 de Abril de 2010 às 21:14
Fui convidado a entrar nesta conversa e agradeço à Zilda essa honra!

Lembram-se daquela velha máxima de Rousseau, de que o homem nasce bom e a sociedade é que o corrompe?!
Sou franco, sempre concordei em absoluto com isto, embora não seja fundamentalista ao ponto de defender o que defendiam os criminalistas, como por exemplo Lombroso (o criminoso tinha características próprias, endógenas, por oposição às exógenas - com origem no meio que o envolvia). Penso que somos egoístas e altruístas, por reacção, embora naturalmente tenhamos uma tendência predefinida! Depois, as experiências quotidianas, vão-nos marcando e acentuando-se, ou seja, até podemos ter a natural tendência de dar a outra face, mas infelizmente, vamos-nos corrompendo e quando damos por ela, já não o fazemos e desconfiamos sempre do próximo!
Um dia, a minha filhota Inês quando andava na 1ª classe, levou uma Barbie para a sala de aula e o respectivo belo cavalo cor-de-rosa. À entrada da sala, parou, e sem que ninguém se apercebesse, tirou o cavalo da saca e colocou-o à entrada, porque os “cavalinhos não podiam entrar na sala de aula”. Quando chegou a hora do recreio, foi a correr buscar o cavalo e o mesmo tinha desaparecido! Ficou muito triste e chorosa, pois não percebeu porque é que ele se evaporou. Eu irritado, expliquei-lhe “sabes porquê?! Porque foste burra e uma colega tua, neste momento está a rir-se a admirar o novo cavalo da sua Barbie!!”.
Hoje arrependo-me desta minha reacção e apetece-me abraçar a minha filha! Foi o que não fiz há 10 anos atrás e que deveria ter feito!! Ela é que tinha razão, pois não temos que desconfiar de todos! A grande maioria dos meninos e meninas não tirariam o cavalinho. Não deveria ter-me irritado mas antes acarinhado a sua inocência!
O meu saudoso tio Daniel Schneider, em Paris, foi a Tribunal, isto há cerca de 6, 7 anos! A história resume-se a isto, uma agente policial implicou com ele por qualquer coisa menor e autuou-o, ele tentou explicar-lhe que ela estava equivocada, mas não adiantou nada. No final da conversa, o Daniel com o seu bondoso e natural sorriso despediu-se da agente com um sonoro “adeus e seja feliz!”. Passados uns meses teve de ir a tribunal e explicar ao juiz que realmente desejou à Agente que ela fosse feliz, que não estava a ser hipócrita, nem quis com isso desrespeitar a autoridade, etc, etc, etc. Foi condenado a uma pena mínima, uma multa, e ao que parece essa condenação valeu quase como uma absolvição, mas … foi uma condenação! O Daniel saiu do Tribunal, satisfeito como sempre e despediu-se do juiz da mesma forma, com o mesmo sorriso e também lhe desejou que fosse feliz!
O Daniel deu a outra face e se o Juiz também tivesse embirrado com a saudação de despedida, ele continuaria sempre a dar a outra face….
Infelizmente, este não é o comportamento segundo o status-quo actual! Como já não era, quando Cristo deu a sua outra face!
Meditamos, especialmente quando estamos tristes e como se percebe nas palavras da Zilda, quando estamos sós, mas sozinhos, ainda que seja fácil estar, falta-nos algo, que nem sempre é fácil de obter! A meditação, por si só, é uma solução, a mais simples, a mais fácil e a mais pura! É o diálogo com a nossa consciência e a consolidação da nossa sabedoria. Há quem se socorra da fé para o conseguir, eu sinceramente, acho que o que importa é que se consiga estar bem, pela fé, ou por outra coisa qualquer, mas bem e isso consegue-se desde que se esteja tranquilo, em paz e em harmonia.

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