Foi num fim de tarde de Agosto. Num dia daqueles em que o sol raia de tal forma intenso que reflecte no chão e faz doer os olhos mal se sai de casa, torna o ar tão pesado que é preciso respirar fundo para conseguir que ele entre pelos pulmões e areje os brônquios e os alvéolos.
Foi num desses dias que eu o vi pela primeira vez. Tinha acabado de sair de casa para me sentar no banco de jardim em frente, com um pão com marmelada numa mão e um copo de leite na outra, os olhos apenas ligeiramente abertos para me proteger do sol e ainda a ouvir as recomendações da minha mãe “Joana: não vás para longe!”.
Mal me sentei ouvi o chiar da cadeira… depois o arfar ofegante do que me pareceu ser uma pessoa num extremo sofrimento. Fiquei assustada, deixei cair o pão, levantei-me do banco de repente e corri para dentro do portão da entrada onde fiquei à espera… Continuava a ouvir o barulho que depois percebi ser o som da respiração de alguém, alguém em esforço. O som cada vez mais intenso, cada vez mais forte, aproximava-se… De repente ele passou. Eu, do lado de dentro do portão, encolhi-me, mas não fui capaz de fugir. Fiquei ali a olhar, aterrorizada… E ele passou… Devia ter aí uns 45 anos, tinha uma pele escura queimada pelo sol, o tronco e o pescoço largos, uns braços enormes que balanceava para trás e para a frente agarrando as rodas da cadeira. A cada movimento soltava um gemido, com os dentes cerrados e o suor a escorrer em bica pela testa. Encolhi-me mais por trás do portão e espreitei por baixo para ver melhor… Vestia uma t-shirt de alças, gasta, e uns calções azuis que cobriam o início das coxas. A certa altura estas desapareciam e o que sobrava dos calções abanava com o resto do seu corpo à medida que a cadeira de rodas progredia no passeio. Passou por mim sem parar. Desviou ligeiramente o olhar do caminho, os nossos olhos cruzaram-se e esboçou um sorriso. Rapidamente olhou novamente em frente e continuou com determinação o seu caminho.
Eu permaneci imóvel enquanto olhava o seu (“meio”) corpo enorme na cadeira a desaparecer ao longe, o som cada vez mais baixo da sua respiração ofegante, ficando para trás apenas o chiar das velhas rodas de ferro.
Joana Gonçalves
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