Na enfermaria, o som do televisor impõe-se abafando algum queixume de um ou outro doente mais sofrido. As imagens que se sucedem ajudam os doentes a não pensar, aliviam o sofrimento.
Com ele é diferente, esta diversão não resulta. Em boa verdade nem se dá conta do lugar onde está; estar ali, em casa ou em qualquer outro sítio é-lhe indiferente. Não quer estar em lugar nenhum.
O seu olhar fixa-se na janela da enfermaria. Está muito perto, porém é incapaz de percorrer essa distância que o ligaria ao mundo. As pernas recusam-se a mexer, ao seu corpo inerte falta-lhe vontade, comando. Ir até à janela exige ânimo. Ânimo, é a alegria de que precisa para expulsar a tristeza que o mata. Mas, para ele, ser alegre não é fácil. Se ao menos acreditasse que existe uma felicidade eterna!... Mas de eternidade, a única coisa que conhece é a tristeza que teima em estar. Leu algures que a alegria não está nos outros nem nas coisas, a alegria está em nós, temos que procurá-la no nosso interior. Procurar em nós?! Mas onde e como pode procurar-se uma coisa que não se conhece?
- Então João, é hoje que aceitas sair comigo? Se quiseres até peço autorização para passear contigo sem bata, fico mais bonita. Vamos dar uma volta no jardim?
Olhou-a sem entusiasmo. Não rejubila com estas manifestações de carinho e isso ainda o entristece mais. Se ao menos conseguisse sorrir-lhe, ainda que um sorriso triste!... Mas triste mesmo, é ele não ter sorriso.
Se alguma vez conseguir sair daquela prisão será com ela que dará o primeiro passeio pelo jardim; é-lhe devido esse prémio. A enfermeira Ana esforça-se, nota-lhe uma preocupação autêntica e tem esta maneira engraçada de tentar estimulá-lo.
- Pode morrer-se de tristeza?
A pergunta sai-lhe sem a sua autorização. Não devia preocupá-la ainda mais...
A ela, não a apanha desprevenida. Lembra-se, quando andava a tirar o curso, de ter estudado casos em que os bebés, por não receberem afecto e carinho, por falta de colo, entram num marasmo que, lentamente, os vai matando. Na sua vida profissional já acompanhou outros casos em que as pessoas por inércia se deixam morrer.
A resposta à dúvida que ele não tem é dura mas verdadeira.
- Então, porque não morro eu?
- Porque eu não quero! Tudo farei para que vivas!
Antes de se afastar ainda lhe sorriu carinhosamente.
Fecha os olhos, recolhe-se ainda mais no seu íntimo, mas desta vez não para se isolar do ambiente que o rodeia, mas para saborear o ligeiro adocicado daquele sorriso.
No seu isolamento consegue ver que a alegria afinal tem um lugar dentro dele, está ali mesmo em frente à sua tristeza. Enfrentam-se num duelo em que a última tem levado a melhor sobre a primeira, provavelmente continuará a ser assim, mas neste momento a distância que o separa da alegria ficou ligeiramente encurtada.
Cidália Carvalho
(A todas as enfermeiras, em especial à minha amiga Ana Rita)
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