Gosta de levantar-se cedo. A casa em silêncio desperta devagar, sem sobressaltos. Aprecia estar só na certeza e no conforto de ter, à distância de um grito, aqueles que dão sentido à sua vida.
O sol levanta-se como ele, lânguido e silencioso e num gesto de altruísmo dá à terra a luz e o calor que alimenta a vida. Determinado a impor-se vai iluminando, primeiro um degrau da escada, depois outro e mais outro, até se instalar no alpendre.
Os seus raios lambem-lhe a cara, aquecem-lhe o corpo, invadem-no com uma pacífica energia.
Não foi sempre assim mas hoje é-lhe grato por esta dádiva desinteressada.
Lembra-se que, quando menino, o pai no seu papel de educador lhe dizia para repartir, partilhar sem esperar nada em troca. Apontava o sol como exemplo de total desinteresse. O sol dá para simplesmente dar, não dá no seu próprio interesse e não espera o reconhecimento de ninguém.
Não punha interesse na sua dádiva!? Mas como poderia pôr, se não sente?
Mesmo assim era exemplo de altruísmo. Odiava-o por isso.
Simone Weil disse que o homem não é um ser egoísta; ele não concorda. Aprendeu cedo que o homem age sempre e apenas em função do seu interesse pessoal.
Hoje, lembrando o dia em que a mãe foi buscar o João à maternidade, ri dos medos e das estratégias imaginativas para lembrar às pessoas que ele também existia. O menino não chorava, não ria, não fazia gracinhas, não dava os primeiros passos nem dizia as primeiras palavras que não tivesse uma legião de testemunhas a aplaudir e a encorajá-lo a novas aventuras. Fingiu estar feliz por ter em casa aquela criatura irritante e assim conquistou o afecto do pai e da mãe.
Quando possuidor de algo afirmava-se e não partilhava com o irmão. O pai, com paciência, lá lhe explicava como deveria agir recorrendo ao exemplo, o único que talvez conhecesse, do sol.
Mas porque não se servia ele dos homens para lhe explicar que não devemos ser egoístas, seria difícil encontrar bons exemplos? Mas não se diz que o homem nasce naturalmente bom?
Ele não se considera mau, mas ainda tem presente com que ambiguidade reagiu ao nascimento do seu primeiro filho. Adorava-o mas odiava a ideia de ter que repartir a atenção da sua mulher; habituados a viverem um para o outro, passaram a ter que viver para o filho. Mas o que mais lhe custava era, sem dúvida, abdicar daqueles momentos de silêncio a que se entregava para crescer interiormente, o momento em que balanceava: o que eu fiz e o que eu poderia ter feito.
Com o nascimento do segundo filho foi diferente, habituado que já estava a partilhar o espaço físico e emocional, o Guilherme foi poupado a alguns momentos de crise afirmativa. Ama-o de igual modo que ao filho mais velho mas não lhe perdoa aquela jovialidade. Finge que não vê as alterações físicas que se vão processando e que transferem para o filho toda a mocidade que vai perdendo: a facilidade com que se movimenta, enquanto ele vai perdendo agilidade; a linguagem ligeira com que se exprime, enquanto ele cada vez mais formal e frases cuidadas... Tem até vergonha de si mesmo por assim sentir, mas a juventude do filho lembra-lhe a velhice que se aproxima. Tem sabido poupá-lo a este egoísmo que o rói interiormente, mas tende a fazer disso um heroísmo, que não é, e que por isso não lhe é reconhecido.
O beijo que recebe é-lhe querido e deixa-se arrebatar aos seus pensamentos tolos e sem sentido, coisas dele, que o avançar da idade alimenta.
-Bom dia filho! É hoje que vais visitar o Sea Life?
- É, pai. Finalmente foi licenciado e já nasceu uma cria, é um tubarãozinho.
- Queres que te acompanhe?
- Claro meu! É fixe quando fazemos coisas juntos!....
- ...Hum! Vamos lá então. Pelo caminho conto-te a história de um egoísta insociável...
Cidália Carvalho
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