28.12.18

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Foto: Flame - Rudy and Peter Skitterians

 

O ano 2017 marca tragicamente a história do nosso país. O drama dos incêndios, não só mudou, como ceifou demasiadas vidas. Demasiadas casas. Demasiados campos. Demasiados sonhos.

 

Maria foi uma das pessoas que, naquela noite, naquela pequena aldeia do interior, viu o inferno a aproximar-se a galope. Quando procurou abrigar-se, já sentia o calor do inferno queimar a sua roupa, e a sua pele. Não percebeu no momento, mas sabe hoje que a sua alma foi a parte do corpo que sofreu as feridas mais profundas.

O teto da sua casa ardeu e desabou, deitando por terra o trabalho de 10 anos em França e muitos mais dedicados à lavoura, ali mesmo, nos campos ao redor da aldeia onde nasceu – e para onde sempre quis voltar.

As primeiras paredes daquela casa tinham sido erguidas pelo seu tio-avô, que lha deixou como herança. Quando Maria decidiu fazer obras de ampliação, fez questão de mantê-las intactas e assim honrar a memória e o esforço dos seus antepassados. “Para quê?… se agora andou aqui o diabo à solta e deitou tudo abaixo?”.

Maria vive agora na casa que foi dos seus pais e que se encontrava fechada há muitos anos, por não haver gente na terra que a quisesse arrendar. São cada vez menos os jovens que ali se instalam, e são cada vez mais os idosos que são obrigados a procurar cuidados fora da pequena aldeia, tornando cada vez mais próxima e real a ameaça da desertificação que, também Maria, já ouviu referir nos telejornais.

Não se cansa de dizer que “felizmente, e com a graça de Deus nosso Senhor, ninguém morreu por aqui”. Não se cansa, mas cansa-a a memória daquela noite em que do céu chovia o fogo. Aquela noite em que temeu por si e pelos seus. Aquela noite que não quer recordar, mas que não a larga a cada passo que dá nos terrenos despidos, onde a medo começam finalmente a surgir pontos verdes aqui e ali.

 

Maria viveu na primeira pessoa o que é isso de precisar da solidariedade. E sentiu-se incomodada com a vinda de estranhos à sua porta, que lhe entregavam leite, massa e enlatados, em troca de pormenores trágicos da noite que queria e precisava de esquecer por instantes.

Foi com a chegada do Vítor e dos voluntários que a ele se juntaram, organizados e respeitadores da privacidade de cada um, que Maria entendeu a verdadeira solidariedade: a que respeita a dignidade de quem, no momento, está numa situação mais frágil.

Impressionou-a como tanta gente chegou àquele cantinho da serra, com luvas nas mãos e botas nos pés, e uma força de vontade tão grande para limpar a destruição “que o diabo ali semeou”. E tocou-a o abraço que recebeu, daquela criança que quis vir ajudar, com o pai, durante as férias de Natal.

Também ela se juntou algumas vezes aos forasteiros. Também ela abriu as portas da sua “nova” casa para servir um lanche, naquela tarde de dezembro em que “fizeram o favor de ir ali abaixo limpar os escombros que ainda estavam caídos para a rua”.

Já passou mais de um ano e já muitas vidas cruzaram a vida de Maria, naquela pequena aldeia onde nem o merceeiro já passava. Mas à noite, quando fecha a janela do quarto e se senta na cama, a rezar a Nossa Senhora de Fátima, faz questão de agradecer a vida de cada um dos que a ajudaram a reerguer a sua. Até mesmo a vida daqueles que invadiram o seu espaço cedo demais, só para ficarem bem nas fotografias. “Cada um dá o que pode, daquilo que tem”, desabafa ela muitas vezes na sua oração.

 

* Este texto reúne retalhos de vidas atingidas pelos incêndios de 2017, mas não retrata a história de nenhuma pessoa concreta.

 

HTR

 

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24.12.18

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Foto: Homeless - Brigitte Werner

 

Sou solidária. Todos somos! Seremos? Quero acreditar nisso, que em algum momento da vida, cada um de nós foi capaz de estender a mão ao próximo. Mas aquilo que sei é que o mais solidário é aquele que, no seu íntimo, sabe exatamente o que é necessitar de algo, mas algo vital. Seja uma refeição, um abrigo, um agasalho ou mesmo um abraço caloroso naquele momento em que nos sentimos em queda livre e com dúvidas se o paraquedas irá abrir-se.

Hoje em dia todos necessitam da solidariedade alheia. Ontem, hoje, amanhã e depois de amanhã tal como num futuro próximo, fui, sou e serei “convidada” a ser solidária. E nalgum desses momentos encontrei a causa para a qual quererei dar de mim. Mas será que se pode chamar solidariedade, nestes casos? Porque a sensação que tenho é que a maioria de nós está apenas a ceder, seja a algo chamado “pressão social” ou algo chamado “peso na consciência” porque no meio de tantas solicitações “não me vou sentir bem se não ajudar pelo menos uma”. E assim a minha missão fica cumprida. Não me parece genuíno, principalmente quando oiço no supermercado “todos os anos, nesta altura, é a mesma coisa, pedem para isto e para aquilo e pensam que podemos ajudar toda a gente!”. E aí é a pressão a falar alto. Mas provavelmente, ou muito certamente, são esses que, ao longo de todo o ano, nunca se “lembraram” de ser solidários!

 

É mais solidário aquele que, espontaneamente, despende do seu tempo para dedicar ao outro, naquele momento mais inesperado e de verdadeira necessidade. É mais solidário aquele que recebe solidariedade e sabe partilhá-la com aquele que também necessita. Comove-me sempre ver aquele sem-abrigo com o seu amigo de quatro patas, com quem partilha a sua refeição, o seu desconforto, as suas mágoas, mas principalmente o seu amor. É mais solidário aquele que dá pouco, porque é aquilo que tem, mas que dá de coração, sem se queixar ou sem necessidade de se exibir. É mais solidário aquele que se dedica a uma causa em que acredita, que a cria ou que a encontra, se identifica e se envolve de corpo e alma.

Mas ainda acredito que todos somos solidários! Todos nos comovemos verdadeiramente em algum momento da nossa vida e, espontaneamente, sem esperar retorno, damos com coração.

 

Marisa Fernandes

 

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21.12.18

Hands together - Gladis Abril.jpg

Foto: Hands together - Gladis Abril

 

Ser solidário é?

- Comprar “massa, arroz e salsichas” para entregar numa campanha alimentar

- Comprar postais de Natal de uma organização

- Comprar bonecos ou canetas à porta do supermercado ou da bomba de gasolina

- Colocar umas moedas numa lata e receber um autocolante

- Comprar um miniboneco, de cor diferente do ano anterior

- Comprar um barrete de Natal, de cor diferente do ano anterior

- Comprar um isqueiro ou lenços de papel enquanto estamos parados num semáforo

- Fazer uma transferência bancária para uma conta solidária

- Patrocinar uma criança em África, por débito direto

- Fazer um donativo na declaração do IRS

- Comprar produtos mais baratos numa feira social

- Fazer voluntariado

- Fazer greve de zelo por apoio a colegas de profissão

- Doar sangue / medula óssea

- Todas as anteriores

- Algumas das anteriores

- Todas as anteriores, mas não chega

- Algumas das anteriores, mas não chega

- Todas as anteriores, mas não é bem isso

- Algumas das anteriores, mas não é bem isso

- Algumas das respostas anteriores, mais a opinião do Rui (A “boa” solidariedade – ia escrever verdadeira, mas pareceu-me talvez excessivo – não tem tempos nem períodos específicos. Não é feita de campanhas e de épocas festivas. Não se faz às portas de estabelecimentos, nem aos magotes. Certamente não se faz a troco de benefícios (in)diretos para “quartos”, se considerarmos que os “terceiros” é que deveriam ser os recetores do gesto solidário.

 

A pergunta não é minha e muito menos nova: quanto ganham os supermercados e o governo com as campanhas alimentares? Quanto ganham os bancos com as transferências solidárias? A solidariedade “massificada” ajuda pessoas? Certamente. Mas também “ajuda” pessoas (entenda-se por organizações e algumas figuras de gestão) mais do que deveria? Certamente. A “boa” solidariedade não tem forçosamente de ser voluntariado. A “boa” solidariedade pode (e nalguns casos deve!) ser remunerada. Se é para “fazer o bem”, mas fazê-lo mesmo, péssimo é ter um incompetente de borla a gerir as coisas. A responsabilidade, social neste caso, pode ser voluntariosa ou profissional. Não é isso que está em causa. Em causa está a consequência (social, politica, jurídica) da irresponsabilidade dos atos praticados. Para liderar ou gerir o ato solidário, prefiro ter um profissional solidário que um voluntário solidário. Quer se goste ou não, o comprometimento com a lei é superior ao comprometimento com a consciência. A “boa” solidariedade é individualizada. É o comprometimento com as pessoas e, em segundo lugar, com as causas. É o estar lá mesmo, compreender mesmo, ajudar mesmo, sentir (quase) o mesmo. Sem lamechices ou dramas. Com respeito (e porque não, admiração) pelo outro. Com os Direitos Humanos bem presentes em cada ação, porque sem a sua observância não existe solidariedade.)

Em janeiro perfazem-se 18 anos de trabalho numa IPSS. Sou feliz por observar atos de solidariedade diária há tanto tempo. Permitam-me uma palavra de apreço e agradecimento sentido a todas as pessoas que ali trabalham e, evidentemente, às pessoas para quem e com quem nós estamos.

 

Rui Duarte

 

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17.12.18

Alms - Vannino.jpg

Foto: Alms - Vannino

 

Facebook e quejandos despejam constantemente no correio eletrónico, murais e páginas de Internet, frases sucintas e assertivas carregadas de ensinamentos e moralidade sobre como devemos ser e fazer para praticarmos solidariedade. Empacotam também a recompensa. Em alguns casos vem como uma promessa de felicidade, noutros, como ameaça – se não formos solidários o mais certo é que, quando precisarmos, os outros não sejam solidários connosco. Está tudo lá nessas frases de poucas palavras; o que aqui possa escrever nada acrescenta de diferente.

E quem de nós nunca deu uma moedinha, participou em campanhas de solidariedade, visitou doentes e pessoas solitárias, ouviu com compreensão quem se lhe quis confiar, pondo assim em prática os ensinamentos que recebemos em casa, no grupo de amigos, na escola, no dia-a-dia em convivência com os outros seres da sociedade? No final, vem o proveito da contabilização de mais um crédito na conta corrente do dar e receber. Em certas circunstâncias o gozo de dar é tal que o difícil é distinguir quem recebe de quem?

 

Naturalmente valorizo a solidariedade e as ações de sensibilização. E, como não valorizar e atribuir-lhe importância se são exemplos de boa conduta, consciencialização da miséria e das diferenças sociais, resolvidas tantas vezes com a solidariedade alheia?! Num quadro de desumanização para onde parece que caminhamos, a sensibilização tem, sem dúvida, um papel importante na inversão das forças desumanizantes.

Mas quantos de nós já reconhecemos e colocamos esperança no silêncio dos desistentes? Vimos e acudimos ao olhar suplicante dos desesperados? Compreendemos a fraqueza e ajudamos a reforçar os que, de tanto lutarem, se esgotaram, aceitaram e aprenderam a viver com outras verdades que não a sua? Muitos pensarão que nunca se cruzaram com alguém assim tão desesperado, atormentado, e eu sinto-me tentada a concordar.

 

Vale a pena refletir sobre o solidário. Socorro-me de um dos casos que nos chegam nas redes sociais e que, conforme já referi, abundam. Por uma vez ponhamos de lado a mensagem final e fixemo-nos apenas no facto. Um menino com ar abandonado, a quem não conseguimos colar-lhe uma família, uma mãe que zele pela sua higiene, saúde e bem-estar, recebe de alguém um agrado, uma esmola ou algo que o faz sentir-se melhor. Já vi várias versões: num caso apagam-lhe a fome, noutro dão-lhe umas moedas, e ainda noutro sentam-se ao seu lado e colocam-lhe um braço por cima do ombro num afeto que, claramente o menino não conhece, mas que o faz sentir-se muito bem. Passados 20 anos tem oportunidade de retribuir o que recebeu porque a vida se revelou mãe para ele e madrasta para quem o ajudou. Tenho para mim, e quero manter esta crença porque é aí que reside o verdadeiro valor da solidariedade, que quem deu ao menino a atenção que todo o ser humano precisa e merece não o fez a pensar que no futuro também poderia precisar desse gesto solidário; fê-lo porque sim, porque dar é uma caraterística voluntária de quem é gente. A solidariedade faz-se sem querer vender ou trocar, não é um ato que fica suspenso a aguardar retribuição futura. O solidário não tem em conta nem faz contas ao que dá, também não sofre com a falta de reconhecimento, muitas vezes a pessoa solidária nem sabe que o é – é-o porque se identifica com o sofrimento alheio. Se o solidário é o desesperado, o fraco, o esgotado, o injustiçado e o incompreendido, esconde o seu estado de alma para poupar os outros ao sofrimento – é por isso que não o vemos e não o reconhecemos quando nos cruzamos com ele. Para esses, viver é muitas vezes um ato de enorme solidariedade. Não vivem agarrados à vida, mas vivem porque seria profundamente amoral não esperarem a sua hora, ultrapassarem etapas, abreviarem o fim provocando a dor alheia. A solidariedade comove-me, mas o solidário é um ser tão especial que me move.

São tão poucos os verdadeiramente solidários!

 

Cidália Carvalho

 

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14.12.18

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Foto: Dove - Sirawich Rungsimanop

 

Uma revoada de pombas agitou a tarde parda de inverno e acorreu à atração das migalhas. O velho sacudiu o saco, deixou as pombas à avidez quase mecânica dos instintos, e veio até mim, que o observava, no impasse entre a curiosidade e a intermitência do semáforo, no limiar do adro da igreja.

A luz verde não esperou por mim, porque já o homem me dirigia um sorriso de bonomia. E urgência - de partilhar comigo migalhas da sua vida em troca de uma migalha do meu tempo:

“- Sabe, menina, elas também precisam de comer, coitadinhas. O senhor padre não gosta que se deite pão às pombas, mas eu sei o que é passar fome. Ah, se sei! O que me baleu foi a turia*, aí se baleu! Por quatro tostões, menina, benditos quatro tostões! Eu tinha uns oito anitos, andaba a pedir pão pelas ruas do Porto. Foi numa tasca, lá da ilha, o tendeiro distraiu-se, e eu, pimba! – agarrei nos quatro tostões e fugi... Era uma criença. Bendita casa, a da turia. Comíamos lá bacalhau com batatas, peixe... era um hotel de cinco estrelas, para mim. Benditos quatro tostões! Bibíamos, eu, mais quatro irmão, numa cabe da ilha da (...). Eu chegaba a casa e repartia o pão que me dabam pelos meus irmãozitos, todos mais nobinhos. Era uma festa. A mim dabam-me, às bezes, um caldinho quentinho – já lebaba a barriga cheia, e os bolsos a abarrotar de migalhinhas de pão para os meus irmãos. Eu tinha uns oito anitos, não mais. Bendita a mão que me apanhou e me meteu na turia. A minha mãe também pedia pelas ruas, mas gastaba tudo em binho. O meu pai, o que ganhaba, num daba p’ra nada. Bibíamos todos numa cabe, assim, desta altura, quase nem nos podíamos erguer de pé. Bendita turia! Bendita turia... aquilo foi o céu. Depois, menina, fui pra tropa. Quando bim fui acartar pedra e abrir buracos, para as ruas. Ganhaba binte e cinco tostões. Depois fui para os camiões, p’ra Matosinhos, a ganhar trezentos mil réis por mês. Que fartura! Era bom, muito bom, menina. Mas passei muito. Fiz-me homem, graças a Deus, mas debo tudo àquela santa casa, ali na quinta das Águas Férreas. Bons tempos que lá passei! Parece que só as pombas ainda se lembram, ainda são as mesmas desses tempos – a fome delas é a mesma que eu conheci, é por uma migalhinha de pão que elas lutam.  E só elas ainda sabem que o céu é um lugar onde não se pode ficar parado. Mais tarde ou mais cedo, há que boltar ao chão, ficar á mercê das migalhas dos outros... e esgrabatar a terra. Mais que não seja com os nossos ossos...”.

 

Cinco sinais vermelhos depois, um sinal verde chamou-me ao tempo de ir andando. Um homem, decentemente vestido, com um saco plástico vazio nas mãos de raízes salientes, e os olhos cheios de palavras por dizer, titubeava desculpas, à minha despedida desajeitada.

“- Desculpe, menina, a gente tem tanta bida cá dentro a morrer, que às bezes apetece tentar salbar-lhe as misérias com tagarelices. Desculpe lá, se a atrasei. Sou um belho chato. Tenha uma boua tarde, menina. Obrigado pela paciência. Sou um belho. E chato. Só as pombas me entendem, e sabem da fome que passei.”.

E sorriu. Um sorriso que entristeceu mais ainda a tarde fria e que me deixou por dentro a vontade de reescrever coisas que ninguém sabe. Ou que sabe, mas que esquece, à intermitência dos sinais. Verdes.

 

*turia (ou tituria, no falar do povo): Tutoria (instituição oficial para proteção de menores).

 

Teresa Teixeira

 

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10.12.18

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Foto: Lemons - Richard John

 

Nunca houve tanta instituição de caridade como agora: empresas, organismos do Estado ou não governamentais, associações e entidades, com siglas quase indecifráveis, com enfoque na solidariedade, na proteção do indivíduo e do seu direito à subsistência, à segurança e a todos os cuidados primários.

Mas também nunca houve tanta solidão apregoada, tanta miséria humana, tanta desigualdade, permitidas (e perpetuadas) por gente com poder, dotadas de conhecimento e de estratégias de intervenção que nada mais são do que um manancial de benefícios em causa própria.

Nunca houve tanta gente alerta para as causas sociais, para o voluntariado, para a partilha do seu tempo, da sua condição humana, mais consciência do mundo, dos outros, na busca da consciência de si próprio, como no tempo presente. E como dói – descobre muita gente, com espanto – dar sem realmente esperar nada em troca (sim… às vezes, nem um obrigado), dar perante os desafios da humanidade, sem sucumbir à crítica, ao julgamento, sobretudo perante a ingratidão ou a ofensa. Na resiliência que se constrói, também a capacidade de enfrentar os desafios de outro ser humano e os próprios demónios, mergulhando na dor para sair dela. Como dói, a consciência. Como cura.

 

Oiço muita gente falar do quanto gostaria de ajudar, de fazer algo, um voluntariado, mas não podem, não têm tempo, têm família, empregos e uma carrada de obstáculos que os impossibilita de concretizar esse desejo. Não me cabe a mim julgar ninguém ou saber de que forma enfrentam os seus próprios desafios. Fico triste, todavia, quando percebo, no cantinho do olho, uma tristeza velada de quem realmente sente esse apelo e se sente frustrado por não o fazer. É para eles que escrevo hoje. Para aqueles que não têm tempo (ou meios) para dedicar umas horas semanais a uma instituição, para aqueles que não sabem como fazê-lo, para aqueles a quem a condição do outro não é alheia à sua própria condição e sentem faltar algo nas suas vidas por não serem solidários. Podem fazer muito, podem fazer a diferença na vida de vários seres humanos. Um que seja, acreditem, será extraordinário.

Comecem com o senhor da mercearia que, todas as manhãs, se cruza convosco e só espera um “Bom dia”, olho no olho; aquele minuto, junto da caixa, acompanhado de um sorriso, pode fazer toda a diferença. Ou comecem com a primeira pessoa que veem de manhã, ao abrir da pestana, e que partilha a vossa vida; fazê-lo antes de olhar para o telemóvel pode significar um chão seguro debaixo dos pés, em cada jornada. Se o vosso vizinho precisa de ajuda e podem ajudar, ajudem. Sem pedir nada em troca. Vale o primo, a mãe, o ilustre desconhecido, a velhinha que vive no 35, a senhora da padaria, o mecânico ou o carteiro, desde que seja genuíno.

Quando eu era catraia tinha um tio que, pelo menos, duas vezes por semana comprava limões, salsa e feijão-verde a uma senhora que vendia, com uma pequena banca, na porta do mercado. Acompanhei-o diversas vezes e interrogava-me sobre a quantidade de coisas que ele comprava e de que forma ele e a minha tia podiam consumir tanta coisa. Num certo dia, vencida pela curiosidade, perguntei como era possível comer tanto limão, tanto feijão… quando o meu tio comentou que pretendia ajudar a senhora, perguntei porque não lhe dava, simplesmente, dinheiro (já que podia), em vez de comprar tanta coisa. Na onda do seu sorriso respondeu à minha ignorância com carinho, dizendo-me que a caridade sem dignidade não existe; e que havia gente que o fazia, sim, mas que aquilo não era realmente caridade, era negócio. Acrescentou que quando queríamos e podíamos ajudar alguém, o devíamos fazer sem diminuir, sem humilhar, sem procurar exposição ou a atribuição de um prémio. Com respeito, humildade e integridade. A senhora Maria vendia os seus legumes e frutos, prestava um serviço, dizia-me ele. Comprar-lhos a um preço justo permitia-lhe valorizar o trabalho, o esforço e o sacrifício daquela doce senhora que, com quase oitenta anos na altura, ainda cuidava da terra, de um filho adulto com diversos problemas e vendia o fruto do seu trabalho, de segunda a sexta, na porta do mercado. Fez-me tudo muito sentido, mas disse-lhe que não havia respondido à minha questão inicial: os legumes, os limões, a tonelada de salsa, que destino lhes havia sido reservado? Depois de uma sonora gargalhada disse-me que teria deixado de comprar à D. Maria se tivesse deixado apodrecer um limão que fosse. Chegou a temer que isso pudesse acontecer, mas, ao longo dos anos, apareceu sempre alguém, na hora certa, com quem partilhar, o que lhe havia poupado esse constrangimento. Disse-me que não eram as palavras que lhe dirigia o que realmente contava, mas o que fazia, com o que ela produzia e vendia, quando lhe virava as costas. Com ele aprendi que a solidariedade não é um casaco que se veste consoante a estação do ano, tão pouco é algo que nos dá (ou deve dar) protagonismo ou “isenção moral”. Visa o genuíno bem de alguém, em primeiríssimo lugar, e o bem da humanidade, de uma forma mais abrangente.

 

Por isso, façam apenas o bem pelo bem. Parece difícil, bem sei, mas é tão fácil dizê-lo quanto fazê-lo. Não precisam de ir para o Quénia fazer voluntariado para se sentirem úteis. Abram os olhos, o coração e olhem em volta. Estendam a mão e façam milagres ao pé da porta. Se calhar não vão aparecer nas revistas ou ganhar um Nobel, mas garanto-vos a mesma sensação de orgulho e alegria do melhor dia da vossa vida. Há tanto sofrimento à nossa volta a que não podemos acudir, comecemos pelo que está ao alcance da nossa mão. Podemos fazer muito, de forma anónima, todos os dias. Não esperem “o momento”, comecem hoje. Pode parecer-vos tarde, mas jamais será em vão.

 

Alexandra Vaz

 

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7.12.18

Portrait - Szilárd Szabó.jpg

Foto: Portrait - Szilárd Szabó

 

Coisas bonitas. Gosto de coisas bonitas.

Gosto de me emocionar – é um dos sinais mais evidentes de que estou vivo, desperto, tenho energia - e a estética, a beleza sensibilizam-me, motivam-me.

 

Portanto, aqui vai: todos iguais, todos diferentes. Falando de pessoas. Iguais em termos de oportunidades, de direitos, de deveres, de acesso. Diferentes na particularidade de cada um, na nossa individualidade, na história que fomos vivendo e que nos foi sendo transmitida. O nosso caminho.

As diferenças podem ser ínfimas, pense-se nos gémeos verdadeiros, quase impercetíveis à vista, como é a primeira. Esse mínimo se não for combatido vai, naturalmente, gerar a prazo diferenças mais ou menos evidentes. Somos pessoas, somo indivíduos, somos diferentes, especializamo-nos, adquirimos diferentes capacidades.

Referi-me à passagem do tempo e de como a mínima diferença, não interditada, irá gerar particularidades que nos individualizam notória e evidentemente.

É bom, é bonito, enriquecedor.

É como, passando para o espaço, duas retas quase, quase paralelas, de tal maneira que se nos fixarmos num segmento de um metro, aparentam ter a mesma distância entre elas nos seus extremos. Agora consideremos as retas sem princípio nem fim, haverá um ponto onde se cruzam, assim como há inúmeros pontos onde a distância entre elas é infinito. Só para visualizar.

 

Convém não esquecer que as diferenças, digamos individualizantes, convivem com as semelhanças, não as apagam. Não anulam uma caraterística do Homem que é a de ser gregário, organizar-se em sociedade, família, vizinhança, nação, cultura...

Diferença convive bem com semelhança. Como indivíduo com família, grupo, sociedade. Não só é compatível, como pode ser enriquecedor. Se se utilizarem as competências, interesses, gostos de cada um – sejam quais forem, técnicas, artísticas, sociais, abstratas, concretas, manuais ou intelectuais – numa perspetiva de troca, de distribuição, com o intuito de acrescentar algo a outro, individualmente ou em conjunto, se ganho com a ajuda de outros para suprir dificuldades próprias, estamos a ser solidários, gregários. A utilizar a individualidade, livremente, voluntariamente, como fator de gregarismo em que outros ganham competências e capacidades para as quais não estavam tão habilitados, circunstancialmente ou não.

 

É solidariedade. Troca de recursos, podem ser ideias, em que somos, todos, interdependentes. Solidarizando mutuamente. A troca não tem de ser imediata, nem é uma igualdade contabilística, mas é suposto acontecer. Assim não desvalorizemos, cada um ou a sociedade, a capacidade de ninguém. Assim reconheçamos o que precisamos, reconheçamos quem tem mais competência e saber, assim queiramos ser ajudados.

Não para criar dependência, não como obrigação, antes e primordialmente para melhorarmos, para sermos mais capazes. É solidariedade.

A solidariedade é bonita.

 

Jorge Saraiva

 

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3.12.18

Ice-candy - Fireflydaily.jpg

Foto: Ice-candy - Fireflydaily

 

“Ognuno sta solo sul cuor della terra

trafitto da un raggio di sole;

ed è subito sera.”

(Todos estamos sós no coração da terra

trespassado por um raio de sol;

e de repente anoitece.)

Salvatore Quasimodo

 

Compaixão pelos oprimidos e vulneráveis pode ser vista por vários ângulos: eu não sei como algumas pessoas se amam a si próprias, mas se forem sadomasoquistas, se calhar, passo à frente.

Durante a recessão económica, a situação de vulnerabilidade de países, famílias e empresas vestia palavras como PIGS, culpabilização das vítimas e da necessidade de empoderar e empreender. Nota-se mesmo que a língua portuguesa tem dificuldades com “empoderar”, tão feia que é a palavra, postiça.

Atualmente, quando penso nesses tempos recentes, cheira-me a cinzas, de ressentimento, de rejeição e de não pertença, falta de confiança e do muito que se perdeu. Da diferença entre os que ficaram, os que partiram e com o que podemos contar agora, olhando pela nossa janela. Erosão de valores, de vidas e de esperança. Ouvimos falar que as sociedades são líquidas e voláteis, do momento. Espero que daquelas que pondo no congelador com um pauzinho, dê para comer como gelado. Gosto muito.

Nussbaum escreveu sobre a inteligência da compaixão. Ela refere os três tipos de julgamento emocional que afetam o nosso modo de pensar perante uma situação de apelo à solidariedade. Refere o julgamento pela dimensão da tragédia, sinto-me mais solidária se a injustiça do outro é séria e não algo trivial; o julgamento por não merecer, ou seja, a pessoa não teve controlo em nada da injustiça em que se encontra; e o tipo de julgamento eudemónico (que vem do grego e significa “o estado de ser habitado por um bom daemon, um bom génio”, traduzido como felicidade ou bem-estar). Neste tipo de julgamento eudemónico, a pessoa a quem se destina o ato de solidariedade é parte integrante do meu esquema de objetivos, projetos e valores pessoais, um fim último pelo qual o Bem existe.

Este último é relevante pois, segundo a autora, vamos estar mais inclinados a ver o outro mais parecido connosco e só nos interessarmos mais por essa razão, pela probabilidade de algo similar nos acontecer.

Quando estamos mais em baixo, cuidar de nós passa por estarmos próximos de pessoas que são como casa para nós e, na ausência delas, sentir o bater do coração e respirar, como se estivéssemos mais próximos do verdadeiro coração do mundo.

Em 20 de Dezembro, a solidariedade tem a sua celebração internacional. Esta preconiza, muitas vezes, a intervenção em situações de urgência e de preservação da paz social.

Por mim, atendendo à lógica de poder subjacente à narrativa da solidariedade, pensando em duas pessoas em diferentes posições de existir num dado contexto, penso que seria interessante um contacto de proximidade e de respeitar o outro na liberdade da sua decisão, como autor da sua própria vida. O contacto com o diferente traz sempre novidade e isso permite evoluir, como indivíduos e como grupo.

 

Referências:

Nussbaum, M. C. (2001). Upheavals of thought: The intelligence of emotions. Cambridge: Cambridge University Press

 

Maria João Enes

 

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