Foto: Girl - Anastasia Borisova
Ao longo dos anos, fui-me sentindo cada vez mais grata pelos relacionamentos reais, profundos, sem máscaras, que enriqueciam a minha vida. Eram tão raros que a sua simples existência – de um que fosse, esporadicamente –, era suficiente para sentir validada a minha fé no dia seguinte, nos outros e, inevitavelmente, em mim própria. Contudo, perceber a fragilidade dos outros não me permitiu antecipar (ou acarinhar) a minha própria fragilidade. Num mundo onde um elevado número de pessoas vive, única e exclusivamente, em torno do seu umbigo, é muito perigoso não nos cuidarmos, em primeiro lugar. Quando caímos, a menos que tropecem em nós, são poucos aqueles que sentem a vibração da queda e nos vão procurar, sem pensar duas vezes. Essa é a realidade. A esses, eu chamo “tribo da alma”. Uma espécie de lugar seguro onde se entra sem máscaras ou rótulos, e se é amado na totalidade do Ser. Sobretudo naqueles dias em que não nos conseguimos amar… Na expansão da mente e do coração, a tribo vai crescendo também. Pertencemos (sempre que possível, escolhemos estar), pela frequência silenciosa que vibra debaixo da nossa pele, muitas das vezes, sem sequer o percebermos. A magia da vida.
Gosto tanto da minha individualidade, da minha jornada em mim própria, dos meus momentos em silêncio, quanto aprecio a partilha, a comunidade, a sensação de pertença, de escolha e de ação. Gosto da pertença, sim, porque, só livre, se pode pertencer. Escolher estar, lembra-me que jamais me devo acomodar ao que me faz mal, ao que me rouba a paz ou me estende ao comprido. Só inteira posso pertencer porque ninguém me pode dar o que não sou capaz de dar a mim própria. Pessoas inteiras têm vidas fragmentadas também, malhadas no calor da bigorna da existência, mas escolhem, todos os dias, ser a pessoa de quem precisam. Há pessoas de quem faço parte e que fazem parte de mim. Pessoas com quem adoro estar e que me fazem sentir em casa, mesmo que não nos possamos abraçar ou falar, durante muito tempo. Agarro-me a elas com braços e pernas, lembro-lhes o quão importantes são para mim, valorizo a nossa transparência, nos sentimentos, nos pensamentos, nas ideologias diversas que fazem parte, também, do nosso espólio mental e visceral. Chamo a isso honestidade, lealdade, respeito e integridade. Para mim, constituem os vetores mais importantes no que toca à existência de pessoas na minha vida privada. Sem eles, fico perdida, sem rumo e sem vontade.
Aos poucos, houve gente de quem me fui afastando porque não faziam qualquer sentido na minha vida. Falavam de valores, pregavam a justiça, a coerência e a compaixão, mas, na prática a teoria era outra. Vezes sem conta. E quando aquilo a que chamo valores, depende de quem faz o quê e a quem, não são realmente valores, são apenas conceitos vazios e abstratos que uso quando me dá jeito. Não consigo respeitar a falta de congruência, a injustiça, a maldade ou o comodismo da ignorância. Nada nem ninguém pode construir camadas dentro de mim se não sabe viver para lá do seu umbigo ou se dedica a ferir o seu semelhante. Sem aquilo que para mim é importante, nenhum pacote promocional me seduz. Nem sempre foi fácil fazer esta triagem, mas, em nome da dita transparência, ganhei coragem para virar as costas, sempre que possível, assim que possível. Fosse família, amigos, conhecidos. Fosse quem fosse. Contudo, demorei décadas a assimilar tudo isto e a agir sem me sentir totalmente culpada pelo sofrimento dos outros. Como se as dores do mundo fossem minha responsabilidade e, virar-lhes as costas, fizesse de mim uma megera. Embora progressivamente consciente, foi um tremendo desafio separar, eficazmente, a ação necessária à mudança, da programação mental (deficitária) previamente instalada. Mas, finalmente, percebi que ninguém salva ninguém que não quer ser salvo. Ninguém. E que há gente que permanece, sim, enquanto poder alimentar-se da nossa energia, do nosso tempo e da nossa vontade. Por mais que me tivesse custado, hoje não é algo que me tire o sono, o apetite ou me aperte o coração. Fechar portas que não levam a lado nenhum, tem sido das melhores aprendizagens da minha vida.
Aqueles que permanecem, para quem a minha porta está sempre aberta, são-me muito preciosos. São muito menos do que pensaria há poucos anos, mas são exatamente aqueles que me acrescentam tudo. Amo-os, tal e qual como são, e construo a seu lado um caminho sólido nos afetos, nos desafios que todos enfrentamos (e que nos podem mudar, num pestanejar), bem como nas decisões que resultam de tudo isto. Algumas das pessoas mais importantes da minha vida não podiam ser mais diferentes de mim, e entre si, mas com cada uma delas encontro a linguagem comum que nos faz permanecer. Revejo nelas os mesmos vetores que me movem e é-me suficiente para caminhar mais tranquila. Mas hoje, que sei mais um bocadinho, reconheço que, com alguns amigos, existimos porque não dizemos tudo, porque sabemos calar-nos para não ferir. São amizades, tão belas quanto frágeis, que devem ser protegidas das arestas afiadas da incompreensão e da injustiça, em nome dos valores (reais, sustentados pela ação) que as alicerçam. Dizem que não há pessoas perfeitas ou relações perfeitas, na verdade, isso não me importa nem um bocadinho. Sacrifico qualquer momento de razão, qualquer dor mal resolvida, em nome das pessoas “imperfeitas”, mas absolutamente íntegras, que tenho a honra de ter ao meu lado. Não quero começar discussões que vão apenas magoar, tão pouco desejo alimentar expetativas irreais – neles ou em mim própria. Não quero perder aqueles a quem chamo irmãos, irmãs, companheiros de uma vida. Prefiro ter paz com eles e aceitar que preservar o bem maior, implica abdicar de alguma dessa transparência que tanto aprecio, escondida por detrás das muralhas que as pessoas erguem.
Dizia Francisco Xavier: “Aos outros, dou o direito de ser como são. A mim, dou o dever de ser cada vez melhor.”. Continuo a aprender a estar com os outros, mas, dentro de mim, não permito mais portas fechadas ou quartos secretos; devo essa honestidade a mim própria, mesmo quando doer. Ao mundo, não peço (mais) nada. Já me sussurrou, diversas vezes, que o tempo será curto para todos nós e mais veloz do que imaginamos.
Alexandra Vaz