Beleza é um conceito, dizem. E que está apenas nos olhos de quem vê. Pode ser. Mas depois há aqueles momentos em que o que vemos nos esgota a capacidade de olhar, e nos obriga à sujeição de todos os sentidos e à reverência a coisas inexplicáveis: é aí que nasce a Poesia.
Cheguei hoje de uma curta viagem para fora do meu país, Portugal. Anoitecia quando o deixei, há duas semanas, num dia de céu limpo. Virei a norte, voando, e a linha de fogo que demarcava o horizonte líquido era de uma nitidez afiada e longa, que me cortava a respiração. Subjetividade? Sim, talvez – a minha pele é, confesso, extremamente vulnerável a golpes de luz, e a minha respiração a cortes de espanto, quase susto. Nem pensei em beleza, ou qualquer outro adjetivo – apenas vi. Juro que vi.
Depois, o céu cresceu, debruado a lume esmaecendo, e a terra foi ficando preciosa, lá no fundo. Sei lá, ou talvez fossem os meus olhos, que já não olhavam, apenas me enriqueciam de filigrana delicada e faiscante – sei lá, ou talvez fossem as luzes da cidade a iludir-me... Talvez. Mas era belo! Belo, o trabalho de ourives, em arabescos, caprichos, flores, corações estilizados. Teias de fios dourados, desenhando joias espalhadas no veludo negro das povoações namoradas do mar. E juro que não ficou tudo pelos olhos, por isso, comecei a duvidar, desde então, nessa máxima de que “a beleza está nos olhos de quem vê”.
Como já disse, voltei hoje a Portugal, vinda de norte, pelo ar. Era de dia. E não sei se foi saudade, se foi poema – só sei que, descendo, a minha terra se me revelou, outra vez, de uma beleza que me abanou por dentro... Deve ter chovido, porque os prados, ponteados de casas e bordejados por pequenas manchas de árvores, eram de um verde vivo e liso. Deve ter chovido, porque os meus olhos se humedeceram, deixaram, outra vez, de saber olhar, e puderam sentir a recendência das ervas recém-cortadas, o cheiro dos pinheiros mansos, o conforto sensitivo de uma bela manta de retalhos, carinhosamente criada por mãos que sabem da beleza, sem saber que o sabem. E juro que, desta vez, senti por dentro que “a beleza está na alma de quem ama”. Com poesia ou com saudade. Ou com ambas.
A Rua das Camélias é a minha rua favorita da cidade. Tem um lindo nome e, só por este facto, seria capaz de a adorar mas, na verdade, não foi por esta razão que me enamorei dela: aqui vivem os protagonistas da mais bela história de amor que habita na minha memória. Há mais de quatro décadas que tive o privilégio de conhecer o Sr. Artur e a D.ª Aurora, duas pessoas adoráveis que me enchem a alma. Na altura em que eu era gaiata, a D.ª Aurora era a melhor modista da cidade. Vinha gente de todo o lado, até gente das revistas, da política e da banca, procurar os serviços das suas mãos abençoadas. Contavam as minhas tias que, décadas antes de eu nascer, já as mulheres se sentiam rainhas vestidas por aquela doce senhora de olhos muito azuis, sorriso sereno e pele de porcelana. O Sr. Artur era joalheiro, arte herdada do pai e do avô, e mantinha uma rotina de trabalho que lhe permitia esperar a sua Aurora, ao final da jornada, sem falhar um dia que fosse. Quando a D.ª Aurora fechava o atelier, já o Sr. Artur a mirava com um sorriso de orelha a orelha, como se a visse, sempre, pela primeira vez. Foram muitas as vezes em que estive sentada no banco do jardim, do outro lado da rua, a apreciar esta cena, invadida por sentimentos paradoxais: por um lado, fascinada pelo fenómeno de uma história de amor que recomeçava a cada dia, por outro lado, incapaz de perceber que a disfuncionalidade da minha família não me permitia, ainda, entender aquela entrega. Na realidade demorei muito tempo a compreender que aquilo é que era, realmente, amor. E que, nesse espaço sagrado, não podiam viver a dor, o medo, a raiva, a tristeza e a angústia (sentimentos e emoções que, no quotidiano da minha família, significavam afeto, carinho e preocupação), subjugados em mim pelos sorrisos, pela cumplicidade daquele casal, pela intensidade dos seus abraços. O Sr. Artur e a D.ª Aurora eram, aos meus olhos, as pessoas mais poderosas do universo: tinham o dom de fazer parar o tempo e de me inundar dos melhores sentimentos do mundo.
Um belo dia, a sair do atelier, onde insistia em trabalhar diariamente apesar da idade avançada, a D.ª Aurora deu uma aparatosa queda, mais rápida do que o Sr. Artur conseguiu pestanejar. Estendida ao comprido rebentou num pranto convulsivo, enquanto balbuciava que não tinha partido nada, a não ser o orgulho, e que a deixassem ficar ali até a vergonha a consumir. As pessoas que passavam iam parando, incertas sobre se deviam intervir ou não, quando, subitamente, o Sr. Artur se deixou cair no chão numa acrobacia digna do “Cirque du Soleil” e rebolou até à D.ª Aurora, sem proferir uma só palavra. Esta, incrédula, tinha esquecido as lágrimas e a vergonha e observava aquele homem, caído a seu lado, cujo ombro encostado ao seu a fazia sentir em casa. Foi ele quem, gentilmente, quebrou o silêncio:
- Queres ficar aqui estendida, meu amor, muito bem, ficamos. Já sabes que onde estiveres é onde eu estou. Só espero que não chova… e olha, Aurora, minha amada, lembra-te que já não vamos para novos… se calhar, daqui a vinte anos, experimenta encostar-te a um muro ou a uma árvore, estás a ver a ideia? Estas sestas no passeio, no meio do povo a passar, só porque sim, são capazes de nos matar, Aurora. Mas hoje, meu amor, estamos aqui. Dá cá a mão, isso, aperta. Vês? Está tudo bem. Quer dizer, se não partiste mesmo nada… Se partiste, Aurora, pelo amor de Deus, diz-me, meu amor, que temos de correr já para o hospital! Correr… rastejar! Assim que eu conseguir virar esta carapaça ao contrário…
Depois disto, a D.ª Aurora agitou-se num riso que a sacudiu inteira e o Sr. Artur permaneceu ao seu lado, fascinado com cada gargalhada que lhe inundava os sentidos. Lentamente, foram-se elevando e quando estavam, finalmente em pé, frente a frente, ele tomou-lhe a face entre as mãos e beijou-a ternamente. Naquele momento mágico todas as preocupações da D.ª Aurora se desvaneceram. Pude ver a tensão abandoná-la e o seu corpo sucumbir, seguro, no abraço do Sr. Artur. De olhos fechados – estou certa que viam mais do que todos nós com eles bem abertos –, ficaram unidos naquele beijo terno, enlaçados, esquecidos do mundo e dos demais. Nada, absolutamente nada, podia ser mais belo do que o que eu presenciava e sentia. Ainda que o futuro fosse uma incógnita na minha cabeça, ainda que aquele Amor Maior pudesse nunca encontrar o seu caminho até mim, eu soube, naquele momento, que era real. Que pessoas de carne e osso o tornavam genuíno, visível, único. Aquele episódio mudou a minha vida. Tornou-se a bússola da minha alma nos assuntos do coração, guiando-me em muitas tempestades violentas, lembrando-me de nunca viver (voluntariamente) pela metade: o amor era precioso demais para ser tratado como um sentimento de segunda.
Deixei de os ver durante muito tempo, ou de passar na Rua das Camélias e, lentamente, a sua memória tornou-se distante e difusa. Contudo, ao longo da minha vida, quando precisei de sair de histórias caóticas, feitas de dor e de engano, eram eles que me ancoravam e me davam forças para me resgatar a tudo que não fosse, realmente, amor. Na verdade, o amor não pode ser chamado de tal sem um lugar seguro onde se cresce a dois, soube-o com eles. Nenhum amor sobrevive uma vida inteira pela metade, nem o amor-próprio consegue tal proeza. E as minhas células recusaram esquecê-lo, mesmo quando a memória o atirou para uma gaveta perra e (quase) esquecida.
Esta semana voltei à cidade. Já cá não vivia há muito tempo e soube bem voltar a casa. Perdida em mil pensamentos, dei por mim a calcorrear as ruas que há muito não trilhava, guardadas na pele e na memória. Quando percebi onde estava, tive um baque! Naquela varanda florida à minha frente, assomava em tempos a D.ª Aurora para descansar os olhos da costura. Como era bela, altiva, serena! Aqui, mesmo ao meu lado, aconteceu o trambolhão monumental da D.ª Aurora e a queda por solidariedade do Sr. Artur. Hoje, terão os dois mais de noventa anos. Sorrio, com o coração derretido e, ao mesmo tempo, apertado: é perfeitamente plausível que nenhum dos dois esteja vivo e entristece-me este pensamento. Não quero ir embora, ainda não estou capaz de os deixar partir em mim. Sento-me em frente à varanda, tomo um café e saboreio cada pormenor daquela história, como se tudo se tivesse passado ontem. Décadas de detalhes saltam na minha mente, sinto o coração expandir só por lembrar. Posso sentir de novo o aroma do perfume da D.ª Aurora, posso escutar a sua gargalhada e a voz quente do Sr. Artur! Posso lembrar a dança dos seus movimentos, a linguagem dos seus corpos, a força do seu olhar! Sinto-me em estado de graça enquanto viajo na sua história e a registo em mim, mais uma vez, na esperança de que nunca morra.
Depois de um tempo que não sei precisar, perscruto o local em busca do empregado de mesa. Duas mesas ao lado, uma gargalhada desperta a minha atenção e os meus olhos detêm-se num par de olhos azuis que sorri enquanto, docemente, duas mãos aproximam um rosto do seu e beijam os seus lábios. É quando esses olhos, finalmente, se fecham, que reconheço aqueles dois belos nonagenários. Não os teria reconhecido, todavia, se caminhasse, por ali, distraída… O que eu teria perdido! Estou perplexa! Sinto-me tão grata por este momento… Constato, maravilhada, que o tempo se encarrega de nos tornar magníficos, se tivermos o privilégio de viver longos anos; porém, hábil e determinado, brinca com os nossos traços, ornamenta-os de rugas e torna-nos uns jovens camuflados em fatos decíduos. Enquanto uns amargam, outros transcendem, mas todos, inevitavelmente, envelhecem. Contudo, os olhos da D.ª Aurora não envelheceram um único dia. Alheios ao passar dos anos, continuam majestosos, imensos, felizes, cheios de amor. Não lhes falei mas bebi da sua presença, da sua energia. Deixei-me abraçar pela magia daquele amor de uma vida inteira e pelo sorriso que ainda partilham, tão cúmplice, pleno e sereno. Fui inteira também, naquele momento, naquela esplanada, naquela brisa suave que me trouxe o perfume da D.ª Aurora e a fascinação do Sr. Artur por aquela bela dama por quem, claramente, se apaixonava todos os dias, há mais de setenta anos. Quase duas décadas depois daquele momento que mudou a minha vida, volto a sentir que nada, absolutamente nada, pode ser mais belo do que aquele amor. Na rua onde o tempo para, renasço na certeza de que só poderei viver algo igualmente grandioso se nunca esquecer que, no que toca aos assuntos da alma e do coração, menos que tudo é nada.
Hoje, não sobra espaço nesta cama gigante onde durmo todas as noites. Transbordo amor, sinto o meu corpo repousar, tranquilo, imenso. Sinto a alma em casa, dentro de mim. Sou inteira, aqui, agora, em mim própria – sempre fui, na realidade, mesmo quando não o sabia. Sei que já não tenho muitas décadas para crescer e envelhecer com um companheiro, nas curvas do corpo, nos desafios da psique, nas rugas da pele; mas serei inteira numa vida plena vivida a dois, durante o tempo que me for concedido. O meu “Artur” (que já deve vir um pouco sénior) não precisa de se atirar para o chão quando me der o fanico mas, no mínimo, deve ser alguém inteiro também, que não precise de mim para nada mas que me escolha, todos os dias. Enquanto não chega, sei que a Aurora, o Artur, a plenitude e o amor incondicional existem. Sempre saberei. E basta-me.
O primeiro conceito que me ocorre é o de luz, brilho. Só com boa iluminação, conseguimos, naturalmente, ver. Só vendo, apreciamos.
Assim, por exemplo, não sabemos, não conhecemos, olhando a partir daqui do pedaço, como é o outro lado da lua, o lado não iluminado. E sim, parece-me que está certo, com luz vejo, com luz aprecio.
Mas não chega, completando. Não é apenas o que entra pelos olhos dentro, quase como que se impondo, que eu consigo apreciar. Então, se quiser e for caso de passar de uma (mera?) primeira impressão, vou além de ver e junto-lhe o sentir, algo de interior que, na realidade, não se vê, [mais do que ver, sei, sinto; talvez careça de mais tempo, disponibilidade, do que uma rápida vista de olhos proporciona, não desfazendo no conceito de “primeira impressão”] que está no interior, que não tem luz. Aliás quando sou alagado, emocionado, arrepiado por algo de belo, e o belo pode ser qualquer coisa de imenso, incomensurável, é natural que eu feche os olhos. Para perceber, sentir melhor. Interiorizar.
A luz dá-me imagens, permite-me compreensão, para além de mil palavras, mas a beleza, mesmo que só física, e pode ser muito mais que isso, percebo-a, ilumina-me completamente se fechar os olhos e tentar contê-la, apoderando-me dela, assim, dentro de mim. Extraordinário, maravilhoso, como a mais pequena coisa, gesto, dito, ato - muito pequena mesmo, (quase) impercetível, para quem (es)tiver com menos disposição, sensibilidade - pode ser imensa, envolver-nos, encher-nos, quase a ponto de não nos contermos e transbordarmos, tornar-nos maiores!
O primeiro conceito que me ocorre é o de luz, brilho. Só com boa iluminação, conseguimos, naturalmente, ver. Só vendo, apreciamos.
Assim, por exemplo, não sabemos, não conhecemos, olhando a partir daqui do pedaço, como é o outro lado da lua, o lado não iluminado. E sim, parece-me que está certo, com luz vejo, com luz aprecio.
Mas não chega, completando. Não é apenas o que entra pelos olhos dentro, quase como que se impondo, que eu consigo apreciar. Então, se quiser e for caso de passar de uma (mera?) primeira impressão, vou além de ver e junto-lhe o sentir, algo de interior que, na realidade, não se vê, [mais do que ver, sei, sinto; talvez careça de mais tempo, disponibilidade, do que uma rápida vista de olhos proporciona, não desfazendo no conceito de “primeira impressão”] que está no interior, que não tem luz. Aliás quando sou alagado, emocionado, arrepiado por algo de belo, e o belo pode ser qualquer coisa de imenso, incomensurável, é natural que eu feche os olhos. Para perceber, sentir melhor. Interiorizar.
A luz dá-me imagens, permite-me compreensão, para além de mil palavras, mas a beleza, mesmo que só física, e pode ser muito mais que isso, percebo-a, ilumina-me completamente se fechar os olhos e tentar contê-la, apoderando-me dela, assim, dentro de mim. Extraordinário, maravilhoso, como a mais pequena coisa, gesto, dito, ato - muito pequena mesmo, (quase) impercetível, para quem (es)tiver com menos disposição, sensibilidade - pode ser imensa, envolver-nos, encher-nos, quase a ponto de não nos contermos e transbordarmos, tornar-nos maiores!
Mariam Vattalil era feliz a trabalhar com os pobres e oprimidos de Indore, na Índia. Vertia essa felicidade num sorriso fácil, do tamanho do mundo e à medida de cada um. A irmã Sorriso, assim era conhecida, balsamizava a dor dos sofridos, ajudava os desfavorecidos e integrava os expulsos da sociedade que ninguém queria. Chegavam-lhe desvalidos, vítimas da calhordice de seres abjetos que roubavam a dignidade aos pequenos agricultores, despojando-os das terras e obrigando-os a trabalhar no que já fora deles, a troco de salários vergonhosos.
Às vítimas, instava-as a lutar, aos dominadores, tentava sensibilizar. Ensinava aos pobres métodos agrícolas mais modernos de forma a rentabilizarem o esforço despendido. Mostrava-lhes as vantagens de saber ler e escrever, e sensibilizava-os para que enviassem os filhos à escola. Com as mulheres promovia grupos de autoajuda, transmitia-lhes noções básicas de educação, saúde e higiene. Incentivava-as a constituir pequenas poupanças, criar e gerir micronegócios. Mariam Vattalil era o rosto da esperança que faltava naquele ambiente de miséria.
Aos oprimidos não lhes é reconhecido o direito a ter esperança – se lhes fossem reconhecidos direitos não eram oprimidos – e a esperança deles era um perigo para a ordem instituída e para a paz podre que a sustentava, por isso, a comunidade Hindu e os proprietários locais que enriqueciam com a pobreza dos desfavorecidos, sentiam-se ameaçados. Primeiro tentaram convencer a jovem a deixar o lugar e a deixar de intervir, mas ela, determinada a cumprir a missão para a qual sentia que tinha sido escolhida, não obedeceu e continuou a fazer o seu trabalho junto dos mais necessitados. Convencidos de que não conseguiriam demovê-la, resolveram encomendar a morte de Vattalil. Samunder Singh aceitou fazer o serviço. Muniu-se de uma faca e, no autocarro em que Vattalil viajava para Indore, desferiu-lhe 54 facadas roubando-lhe a vida. Samunder foi julgado e a sentença ditou prisão perpétua.
Um horror difícil de descrever, muito pouco consentâneo com o tema proposto – beleza. Mas se o horror está presente nesta história, também é nele que a bondade do ser humano foi mestra e pincelou um quadro de rara beleza.
Samunder, depois de preso, foi abandonado por todos. A família, envergonhada, não quis saber dele e os que lhe encomendaram a morte de Vattalil, esqueceram-no. A privação de liberdade não o reeducou, transformou-se num ser vingativo, vivia atormentado com um único pensamento: fazer justiça pelas próprias mãos sobre aqueles que o enganaram e abandonaram.
Um dia, inesperadamente uma irmã da vítima Vattalil, visitou-o na prisão. Estava dada a primeira pincelada de bondade na negritude de uma tela que haveria de concluir-se colorida e de uma beleza impressionante. Com uma simples mas imensurável frase, o horror foi-se esbatendo. Frente a frente com o carrasco da irmã, ela abraçou-o e chamou-lhe irmão. A ação da família que tinha perdido um dos seus, de forma tão bárbara e violenta, não se ficou por esse gesto e continuou a surpreender-nos. Moveram influências, fizeram pedidos e conseguiram que a sentença fosse reduzida para onze anos.
Quando cumpriu a pena e foi libertado, Samunder procurou-os para agradecer tudo o que fizeram por ele. E com este gesto a tela ganhou novos tons, sobre ela caiu o vermelho sangue, diluído em lágrimas de uma mãe em sofrimento, mas ainda assim, com a grandeza que a individualizou, beijou as mãos do assassino porque sobre elas estava o sangue da sua filha.
Numa cerimónia recente dedicada a Vattalil, ele lá estava, na primeira fila, para a homenagear; mas a mais bela e reconhecida homenagem que ele lhe presta, ainda hoje, é a continuidade do trabalho que ela começou junto dos desfavorecidos de Indore.
Vidas que me inspiram e me aproximam desta tela colorida onde, em traço muito incerto, é certo, lanço o verde da esperança na humanidade.
Neste mundo tão materialista e consumista em que vivemos, tudo parece gravitar na órbita do desejo de beleza, reduzida esta unicamente à sua natureza estética e orientada apenas para uma realidade virtual e superficial que nos absorve e que só alegra os olhos e muito raramente o coração. Dir-se-ia que, para alguns, é esse o desejo que inspira o sentido da vida. Será assim? Não, seguramente!
A beleza não pode ter esse efeito tão redutor da vida. Sabemos quanto ela motiva e entusiasma tanta gente ligada às artes e à literatura como grande fonte de inspiração que é, sem a qual jamais a arte seria concebível sequer. Contudo, mesmo para lá da beleza natural que nos rodeia: do mar, da luz, dos montes, dos animais, dos movimentos e das pessoas, há uma outra beleza mais profunda, mais verdadeira, mais generosa, que muitas vezes é invisível ou está escondida. Trata-se da beleza interior que deve existir em cada um de nós, a única que não precisa de maquiagem e permanece incólume toda a vida, ao invés da exterior e “fabricada” que se esvai com o tempo. Revelada essa beleza interior, ela pode ser o esplendor da verdade, da generosidade e do humanismo sublime, constituindo um autêntico manancial de virtudes por desvendar. É essa sublimada beleza, de glória e de virtudes, que deve ser procurada. Devemos pensá-la assim mesmo, como uma necessidade e como princípio orientador de educação, de fraternidade, de solidariedade e de alegria.
Saber trabalhar e cultivar a beleza interior pode ser o começo para suportar e aceitar com naturalidade o fim da beleza exterior, para mais tarde, no auge da velhice, se sentir feliz e realizado. É assim que, percorrendo esse caminho de virtudes, a vida tem sentido.
Um evento crítico leva-o ao hospital com 89 anos, faltavam uns dias para os 90. Regressa a casa na madrugada do dia seguinte. Apresenta, agora, limitações que o deixam com alguma dependência para o autocuidado. Durante algum tempo tenta-se de tudo para manter todo o conforto que merece e a que tem direito. Todos os dias corre-se para junto dele.
Um desses dias parece mais prostrado e refere uma dor. A ideia era levá-lo novamente ao hospital (e foi o que aconteceu). Numa aproximação muito terna, uma filha aproxima-se dele e pergunta-lhe: quem sou eu? Ele responde: és o meu amor! Haverá algo mais belo que esta resposta?
O amor pelos pais e pelos filhos é indescritível e reflete momentos que transmitem uma grande ternura carregada de beleza profunda. São estes momentos que ficam para toda a vida e que tornam esse amor eternamente belo.
Ela está em cada esquina, sempre pronta a ser contemplada, nós é que parecemos não ver. Está no sorriso de cada criança. Em todos os dias, à hora em que o sol nasce e à hora em que se põe. Existe apenas porque é bela, não para nos alegrar. É, por isso, egoísta. Não se esconde, porque gosta de partilhar com todos o que tem de melhor. É, por isso, generosa. Nós é que teimamos em olhar apenas para a frente, para aquilo que pensamos ser importante, sem dar relevância aos pequenos detalhes que tornam tudo mais belo.
Sim, a vida pode ser bela se olharmos com atenção, mesmo que tudo pareça negro. Há quem goste do negro... Transmite calma e serenidade, reflexão e introspeção. Há quem goste de cores, muitas cores, que parecem saltar de alegria. A beleza é assim, aparece quando queremos, desaparece quando não a queremos ver. Por vezes não é fácil comandar a nossa vontade para onde deveria ir, mas é possível. Basta deixarmos que os nossos olhos vejam beleza em alguma coisa. Basta... Mas continua a não ser fácil. Então, resta-nos acreditar que sim e nessa fé também poderemos encontrá-la, a beleza das coisas.
Uma pequena graça que contém parte da verdade. Não, não é que as pessoas do litoral sejam feias, longe disso, mas sim que a essência da beleza reside no interior de cada um de nós, evidenciando-se à sua maneira. Ela transparece por meio de um sorriso, um gesto afável, uma palavra carinhosa. Parte do âmago da alma e da pureza que nela reside, iluminando os demais em seu redor.
Ainda assim, nesses atos e evidências, o corpo não é descurado. A aparência assume uma importância inegável em vários campos da vida, mas como a palavra o denuncia, não é nela que está contida a verdade. E a verdade é que do litoral ao interior, de norte a sul, todos temos a nossa própria beleza. Parta ela donde parta, está e estará sempre presente, com os seus contornos característicos.
A última vez em que me deparei com uma beleza cujo impacto me fez parar e ver, foi num museu. O museu, esse espaço onde ninguém lá mora mas em que guardamos a superação de um qualquer viver humano, permite-me passear pelos temas, cores e texturas de modo lúdico, sendo as regras do jogo: “Vê lá se me prendes.”, ou “O que tens tu para me mostrar hoje?”.
À minha espera, encontrava-se a “Pietà”, de Michelangelo – réplica – numa exposição de Madonnas (iconografia da Virgem Maria como Mãe), numa sala mais ou menos escura, como se o visitante mais incauto levasse o seu tempo a chegar lá e pudesse ser também surpreendido pela sua presença, numa atmosfera mais intimista. Imensa gente, ler a legenda, fazer tempo e sentar. Acerquei-me do banco em frente, quase a pedir desculpa aos séculos por só agora ter chegado ao pé dela e aguardar. Pelo quê, não sabia bem e deixei-me ficar.
As primeiras impressões, dizem-nos, levam cerca de 7 segundos a aparecerem, se nos atrai ou se nos afasta. Gostei logo da imensidão da estátua, a sua alvura quase intocável e a sua dimensão que dizia “Eu vim cá para me mostrar!”, sem pudor nem modéstia. E o que me mostrava ela? O que me tocava? No toque, as mãos que percorrem e experimentam são muito importantes. No passe-bem e nas palmadas nas costas. Estas mãos traziam o seu filho, uma mão que o prendia para sempre. A outra mão que se estendia para o céu ou para nós, para um qualquer benemérito que pudesse deixar lá qualquer coisa, essa outra mão pedia-me algo. Nem palavras, nem som, nem nada podia ser dado a essa mão a não ser toda a atenção.
A beleza nesta obra surgiu-me do impacto dos seus contrastes: uma estátua disforme e o desespero de uma figura materna, pequena para tão imensa injustiça; a sua fisicalidade imponente para o silêncio tão íntimo que o grito mudo nos pede, ali a ecoar para sempre. A surpresa do encontro naquela hora tardia trouxe-me o mais belo e o mais terrível. Conversarmos com o nosso belo e com o nosso terrível leva tempo e muitas pautas até se harmonizarem os temperos. Já só queria ficar ali, a conversar com a estátua. Agora, sabia-o bem, iriamos ser amigas e confidentes para sempre.
Podemos encontrar a beleza em pequenas e grandes imagens e, naquele momento, a exposição ou prostração da sua vulnerabilidade foi de uma dádiva infinda. Na obra que para mim se tornou bela, senti algo próximo do que aquela mão afinal me pedia e eu nem pressentia o que tinha para dar: um caminho para a redenção.